Os homens criaram Deus à sua imagem,
cada um o descobre mais cedo ou mais tarde,
exceto aqueles que nunca descobrem nada.

Cees Nooteboom

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Obrigado, desfrute!

— Será que é por causa dos nossos amigos? – cogitou Aquiles, diante do “agradeço seu convite porém declino” que por Theo e por mim comuniquei – O seu novo namorado fez muito sucesso! – senti-me cansado só de pensar em começar a explicar que Theo não era meu namorado, como se assim tivesse de desmenti-lo, recordando-me de que ficara abraçado a mim e me chamara de meu amor só para contrariar Ralph… e também porque estava satisfeito de que pensassem assim, que a “medalha olímpica de ouro” era de fato minha. Em seguida, Aquiles tentou se desculpar por Ralph, contado-me da situação familiar deste, e aventando que, talvez naquele exato momento, o pai de Ralph estaria sendo submetido a uma cirurgia de alto risco da qual não se sabia o resultado, nem mesmo se ele sairia vivo da mesa de operação.

Pela segunda vez no dia senti-me arrogante e insensível, por ter sido incapaz de ter empatia e compaixão verdadeira para com Lissa e Ralph, considerando-os apenas como um exercício para desenvolver minha paciência e capacidade de centramento – mas que afinal revelavam ter cada qual razões mais do que suficientes para estarem tentando distribuir, para quem e como pudessem, o sofrimento que os sobrecarregava. Eu poderia ter imaginado ser assim, pois regra era que assim fosse, sempre – nós não conseguimos sofrer sozinhos, e descarregamos nos outros parte do nosso sofrimento, como se isso nos aliviasse, ou pelo menos nos irmanasse, sofrendo todos, não se diferenciando mais o um dos outros, tornados sofredores todos. Era um conhecido círculo vicioso, o qual já havia contatado em mim mesmo – mas aparentemente ainda encontrava-me preso a ele, por mais que praticasse para cultivar ao meu redor um círculo virtuoso. Lissa e Ralph vinham me mostrar que sim, que precisava praticar mais, para atingir um entendimento profundo e a compaixão pelo sofrimento que enxergava ao meu redor, ao invés de reagir em oposição a ele, fosse com desdém ou contrariedade, gerando eu mesmo mais sofrimento, perpetuando o ciclo.

Ao fim da ligação para Aquiles, demorei lograr colocar um ponto final – talvez porque tivesse em algum momento cogitado pedir a ele o número de Ralph, mas não me decidira e afinal não o fizera, e de novo deparava-me, envergonhado, com minha pouca generosidade, uma dificuldade para o perdão, ainda cultivando ressentimento pela rejeição .

Verena reagiu com menos intensidade do que eu imaginara à notícia de que iríamos acompanha-la à praia – Obrigado. Eu sabia que podia contar com vocês – o plural não passou-me desapercebido, e ao mesmo tempo que me alegrei, verifiquei que pela primeira vez sentia ciúmes do que julgava ser o enorme encanto e talento social de Theo. Depois minha amiga contou-me estar se sentindo exausta — só hoje tinha reunido coragem e conseguido falar com Dona Cida, a esposa do caseiro, e juntas haviam chorado longamente ao telefone. Desde sempre, essa família cuidava do terreno de praia do pai de Verena, e portanto das três casas de veraneio da família contidas na propriedade. Dona Cida vira Gustavo crescer, e tinha se afeiçoado a ele – e ele a ela – como uma espécie de tia-avó coruja, dedicadíssima em seu amor incondicional, no qual muitas vezes encobrira as diabruras do Gustavinho e depois as farras do Gusto. A cada ida à praia, havia um ritual entre as duas de combinar sobre os devidos preparativos para acomodação dos hóspedes, e o cardápio especial de Gustavo, que aos sete anos de idade tornara-se vegetariano.

Lembro-me bem desta época, pois ficamos todos espantados e atônitos, sem reação, sem saber como lidar com o menino. Não havia antecedentes na família de Verena — cujo pai era um militar reformado, que comia uma panelada de mariscos e um prato de coração de galinhas de aperitivo para a churrascada que se seguia — nem tampouco em nosso grupo de amigos ou qualquer pessoa que pudéssemos imaginar fosse do convívio de Gustavo. Não viera de nenhuma personagem de TV ou livro que pudéssemos lembrar. Portanto a escolha dele pareceu um processo natural, e quando anunciou que não mais comeria carne, na verdade há muito tempo ele já vinha deixando os bifes e filés de frango quase inteiros no prato, sem que Verena tivesse atinado com isso. Ele explicava:

— Mamãe, acho que não posso comer o que não posso comer com minha própria boca.
— Como assim? Você morde e mastiga o bife, não é?
— Mas sem faca eu não consigo cortar ele. Só com os dentes, eu não consigo. Está errado. Não é natural, mamãe – então tentamos empurrar carne moída, frango desfiado e patê de peixe – Você me ensinou que os animais são nossos amigos. Não quero comer os meus amigos. Eu nunca comeria o Astor… – era o golden retriever da casa de praia; Gustavo também passou a apontar os cardumes de peixes que chegavam à beira da praia, os siris que passeavam pela areia e, muito preocupado, perguntar se alguém iria caça-los e comê-los – Você teria coragem de matar eles, tio Dan? – perguntou-me certa vez.

Tentamos contemporizar que ele precisava comer carne para crescer e ficar forte – mais por desconhecimento e insegurança nossa do que por real convicção levantávamos este argumento. Mas Gustavo, que jamais perdia os programas de TV sobre o mundo animal, tinha chegado às próprias conclusões, que o colocavam numa posição inabalável – A vaca come outra coisa além de grama? Ela não é forte mesmo assim? Por que é que a gente tem de comer a vaca para ficar forte, ao invés de comer como ela? – e então ele se saiu com uma analogia que todos adoramos – Não seria o mesmo se eu comesse a tia Zezé – referindo-se à professora da escola – para ficar sabendo o que ela ensina, ao invés de estudar e aprender a lição com ela?

Dona Cida tinha sido a primeira a sair em defesa de Gustavinho, sobretudo para protege-lo da incompreensão furiosa do avô, que reputava à educação desleixada e descuidada de sua “filha riponga dada a exotismos” mais uma maluquice inaceitável em uma criança, que não tinham de ter opinião enquanto não pudessem cuidar de si mesmas — de resto, tinham só e sempre de obedecer. Dona Cida passou a esmerar-se no preparo dos pratos, e ao longo dos anos amealhou um vastíssimo repertório vegetariano, sobre o qual falava em linguagem própria com Gustavo, compartilhando quantidade de vitaminas e propriedades terapêuticas. Mesmo assim, estava sempre em busca de receitas novas nas revistas que lhe chegavam às mãos, e sobretudo nos programas de TV a que assistia – e as duas mulheres só haviam começado a chorar, pois durante toda a conversa tinham evitado tocar no assunto da morte de Gusto, quando Dona Cida contara que tinha visto uma receita que poderia adaptar para tornar-se um novo prato vegetariano… E daí me deu uma vontade de que não fosse verdade… de que não tivesse acontecido… de que tivessem se enganado… de que tivesse sido um pesadelo e eu acordasse e pudesse voltar a cozinhar para o menino… — Você sabe se o Theo é vegetariano? – encerrou Verena, com a voz embargada.

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Em que ponto daquela tarde revoltei-me com Theo, e sua presença tão intensa quanto súbita em minha vida, pontuando e até mesmo dominando as conversas com meus amigos? Finalmente senti-me invadido, como Lissa previra e eu até então negara. Foi porém um sentimento fraco, e não ficou claro, pois a tarde inteira, provavelmente por estar in loco, dominou-me a preocupação com o destino do escritório. Até ali, fazia meus planos de afastar-me paulatinamente contando que minha sócia assumiria mais espaço – mas a perspectiva de ela mudar-se para a Inglaterra transtornava tudo, para nós dois. Pretendia que o escritório continuasse a existir com um sócio e meio –sendo eu a metade capenga –, mas não via perspectivas de que apenas meio sócio, e de novo seria eu, desse conta de mantê-lo… E nem me parecia desejar absorve-lo, mas de repente defrontava-me com a idéia de vê-lo fechado, e então percebia o quanto ainda tinha de apego, convenientemente disfarçado de desapego porque podia transferir as responsabilidades a Lissa. Ela antevia todas estas dificuldades há mais tempo do que eu, e talvez por isso sofresse tanto mais. Finalmente, podia compreendê-la melhor, ao olhar toda a situação incluindo sua perspectiva. Embora ao longo daquela tarde buscasse concentrar-me em cada atividade, e como de costume esvaziar minha mente nos intervalos entre elas, no meu campo de visão mental jamais abandonou-me a “dissolução do escritório”, assim eu passara a identificar a nova situação — Ainda vou me tornar missionária no Congo antes de você decidir ser monge! – ameaçava-me, todas as vezes em que conversáramos sobre meu afastamento do escritório. Ser esposa e dona-de-casa – ser mãe também estava nos planos dela — em Londres teria o mesmo efeito sobre nossa sociedade, e alterava as tranqüilas perspectivas dos meus planos preguiçosos e auto-indulgentes.

Naquela tarde, sai da zona de conforto para outra de incerteza, mais profunda, passando das decisões relativas para as irrevogáveis, e estremeci. Apavorei-me. Ruíram minhas duas principais fantasias, pois as vi como o que eram, meras fantasias – a de ser monge, decisão que vinha sempre protelando, e a de trabalhar menos, somente porque alguém estaria trabalhando por mim, e na suposição da continuidade do escritório. Naquela tarde, com cada cliente e fornecedor conversei como se fosse pela última vez, reflexivo, sentindo-me responsável, ouvindo minha própria voz e palavras e as das outras pessoas, todas em minha consciência, tendo bastante consciência da minha própria consciência. Finalmente, muito atormentado, alcancei a profundidade angustiante das reflexões de Lissa – e isso iria finalmente irmanar-nos, de novo, nos meses seguintes, voltando a tomarmos juntos muitas decisões. Naquela tarde, meu passado – representado por aquele escritório — agarrou-se a mim com a força da despedida, do último adeus, provocando em mim angústia diante das renúncias vindouras, e fazendo vir à tona todo o meu apego, a nostalgia, e muitas dúvidas. Da outra ponta, parecia acenar-me o meu futuro, leve, incerto, venturoso e aventuroso, na figura de Theo – e por isso rejeitei meu amigo com tanta força, como nunca antes, como nunca depois. Sabia que ele estaria esperando uma ligação minha, mas quis distender sua vontade até vir a “incomodar-me” mais uma vez no escritório – sabendo também que ele não o faria, e que assim, aquele dia, não nos encontraríamos. Apesar de haver dito que me curaria, soando tão bondoso e doce, suave e seguro de si, como se pudesse ter certeza – ou talvez por isso mesmo, irritei-me com ele, sua confiança em nós, e decidi passar um dia sem mais Theo, sem mais prática, sem mais voltar-me à respiração. Trabalhei até mais tarde do que nos últimos tempos, e decidi ir à academia, onde não tinha aparecido desde que conhecera o deus adolescente. De repente, ele parecia agigantar-se, intrometer-se e mudar demasiado a minha rotina — gritei por independência.

Pensei em talvez ir direto, e dei o endereço da academia ao táxi – na verdade, temendo encontrar Theo no meu vestíbulo, ou até dentro de casa, quando me recordei exasperado que havia dado a chave do meu apartamento a ele! Por que tinha tanta certeza de ter Theo à minha espera? Simplesmente porque ele não tinha outras opções de apoio, com a mãe viajando. Não somente era já o seu melhor amigo, apesar de nosso relacionamento tão recente, mas talvez fosse o único, além de Joshua. Com minha atitude de afastamento, calculei que podia estar empurrando-o para o tal Philippe, e dentro do meu despeito, pensei não importar-me. Seja! Que menino raro e esquisito, tão belo e tão sozinho, tão exuberante e tão desesperado, tão intenso e tão cansativo, tão dedicado e tão insistente… Agora, tantos meses decorridos, posso dizer que na verdade Theo bem pouco me importava naquela tarde, pois não estava reagindo a ele, e sim àquilo que ele representava, uma felicidade tão estupenda, estendendo-se num tranqüilo horizonte de amizade e companheirismo, que chegava a me dar paúra. Naquela tarde, decidira apegar-me ao escritório e a todo o passado de prestígio e conquista e superação e segurança financeira que representara — em oposição, decidi descartar Theo, o único em profundidade e sinceridade com quem eu pudera até hoje compartilhar a prática no cotidiano.

Estava pronto a ser ríspido com ele, e decidi-me por trocar de roupa antes de ir à academia. A tarde inteira tinha sido de angústia, na confusão e aflição em que me perdi da prática – ou do presente, simplesmente, pois a prática a que me refiro nada tem de mística nem mesmo de grandiosamente espiritual, e independe de astros, chakras, luzes, espíritos, mantras, visualizações… E só voltei a ela quando me choquei contra um bilhete deixado sobre o capacho, como se tivesse bicado uma pedra ao invés de pisar um papel, que me ajudou a compreender também que um dos frutos da prática é um coração compassivo, ou se ainda nem tanto assim desenvolvido, mais aberto, permeável, até perfurado, sangrando e penetrado por todos os lados, e que meu cultivado e requentado egoísmo já não durava como esconderijo:

19:23


Este dia
Sem você
Fico incerto
De estar certo
Viver
Este dia

20:23

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clique para ouvir a entrevista Buddha in a cup of tea

Tive de encostar-me ao umbral, sentindo-me zonzo como se tivesse escalado as paredes do edifício até aquele décimo primeiro andar. Meu coração parecia estar do tamanho de uma noz, no peito contraído, a respiração curta e ansiosa, os ombros elevando-se em direção ao pescoço, um soluço entalado na garganta. Quanto equívoco e ressentimento! Com uma clareza, súbita e diametralmente oposta em intensidade à anterior confusão, compreendi meu apego não ao escritório, a prestígio ou dinheiro – meu apego era por Lissa. Poderia abrir mão com certa facilidade daquelas paredes e do que representavam — mas não de minha sócia e mais longeva amiga, e do tranqüilo amor que me inspirava. Só muito depois iria ficar sabendo que minhas constantes medidas de afastamento do trabalho, que tanto a angustiavam, haviam impelido Basil na direção contrária, a de finalmente colocar sua namorada diante de uma decisão que a libertasse e deixasse de atormenta-la. Pela primeira vez, pude realmente admirar Basil, ainda que contra meus interesses – e compreender seu amor por Lissa, o que, para mim, era o mais importante de tudo. Lissa iria para Londres deixando-me para trás entre paredes e de mãos vazias, sozinho com meu choramingo, o estica-encolhe e as indecisões, no impulso e estímulo que agora recebia de Basil.

E finalmente compreendi o impulso que eu mesmo ganhava com Theo. Aquele bilhete dizia-me que eu o atingia com minha ausência tanto quanto com minha presença — e ele parecia sentir com igual intensidade e sensibilidade, tanto minha grosseria quanto minha delicadeza. E daí decidi renovar a determinação em meus votos, íntimos, de cuidar dele da melhor maneira que pudesse, fazer por ele o que uma única pessoa – talvez um dia fale mais dela, aqui — tinha feito por mim àquela difícil idade, dando-me amor e espaço com imensa generosidade, acolhida sincera e um cuidado prudente que não me sufocava, um amparo amplo, carinhoso e sábio. Da mesma maneira como eu tinha recebido, agora iria retribuir com meu jovem amigo.

Senti-me tão aliviado ao ligar para Theo quanto ele ao me atender — de seu refúgio na casa do primo, defronte ao Playstation. Contei-lhe que a única parte leve e feliz do dia tinha sido a decisão de irmos juntos para a praia – e então confessei que precisava gastar o excesso de energia e também de atordoamento e de cansaço na academia, então ficamos de nos ver depois disso – ele sugeriu encontrar-me à saída, combinando uma sessão tardia de meditação – Tá bom?

A academia? Luzes, câmeras, ação. Tantas luzes, e tão excessivas – só podia ser porque as pessoas tinham medo da própria escuridão — que o ambiente tornava-se feio, e opressivo. Assim como num shopping center, tinha a sensação de que aquelas luzes estavam sugando o planeta, e em parte, a mim mesmo, a meu futuro. Câmeras – tantas, por toda parte, nos espelhos, nos celulares, nas vaidades, nos olhares, nos músculos paralisados por botox, nos cabelos de texturas falsas pintados em cores falsas — pareciam fazer brotar o pior das pessoas, e um atordoamento de não saber em que direção olhar, ou viver. Ação – narcisista, exibicionista, toda ela tão longe de qualquer tomada de consciência, que a academia tornava-se a minha anti-sangha por excelência, e o total desconhecimento da prática e do caminho naquelas pessoas lembrava-me constantemente da prática e do caminho. Mas o exercício da plena consciência não exatamente combinava com aquele ambiente – fazer os exercícios com maior atenção e ainda mais lentamente do que já era minha natural tendência seria desrespeitar as pessoas que revezavam nos aparelhos comigo, as filas de malhadores que àquele horário noturno formavam-se. Em observando tudo aquilo — as pessoas cuidando de seus abajures com tanto empenho, sem jamais desconfiarem de que ele podia dar luz, com tanto esmero cuidando dos próprios cadáveres a caminho –, o complexo de superioridade que eu normalmente tinha com relação à minha prática, crendo-me melhor que os outros, surgia com força naquele lugar — o que era um tiro pela culatra, ao verificar que a prática errônea gerava mais idéias de ego inflado do que ajudava a transcende-las –, provavelmente para contra-atacar o complexo de inferioridade que então me dominava, pois meu abajur não tinha nem nunca teria mais de um metro e oitenta e dificilmente passava dos 75 quilos, por mais magro e musculoso que me esforçasse por ser, e quanto mais perto dos quarenta, via aumentar o esforço e diminuir o resultado. Nunca, eu poderia competir com modelos e marombeiros – e assim, retirava-me à competição, intensificando minha prática. Ao contrário do escritório, a academia representava um passado do qual eu já tinha me despedido, a não ser nas mensalidades que havia pago adiantado e que ainda tentava fazer valerem.

Havia um certo rush na saída por volta das 22:30, e foi justamente este horário que combinei com Theo. Atrasei-me um pouco – lembrando-me do dia em que ele aguardara-me no hall sem tocar a minha campainha, avaliando se eu iria espera-lo e dar-lhe alguns minutos de tolerância –, para ter certeza de que o deus adolescente estaria à minha espera, e que eu faria uma saída triunfal caindo em seus braços incomparáveis.

Theo sabia acender a luz – da plena consciência – e portanto podia desfrutar em paz da exuberância do seu próprio abajur. Ele estava me esperando no hall de entrada iluminadíssimo, como se fosse para compensar a profunda escuridão de espírito em que aquelas pessoas todas viviam. Sentara-se a uma das mesas do bar, e ao redor dele pude perceber a excitação com a qual ia me acostumando, como se estivesse na presença de algum pop star. Nem que ele quisesse conseguiria ser discreto, e os olhares das mulheres e de alguns homens, assim como os comentários, estavam todos voltados na direção dele — e por fim na minha, quando ele se levantou sorrindo e veio abraçar-me. Cheguei a corar de intensa satisfação, e quando ele me disse, divertindo-se – Está satisfeito? –, confirmou ter entendido minha pequena estratégia exibicionista. Talvez para dar o troco, vi-me pequeno e senti-me dominado quando passou o braço sobre meus ombros, envolvendo também o meu pescoço, e tirou-me da academia como se me seqüestrasse, debaixo de todo o tipo de olhares, furtivos ou diretos, invejosos, surpresos, lascivos, desdenhosos.

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Subimos a avenida caminhando, Theo empurrando a bicicleta, às vezes montando e desmontando dela, como se praticasse um exercício de equitação, talvez sem notar a própria inquietude e excesso de energia. Contamos um ao outro brevemente como fora o dia, e Theo disse ter saído da casa de Joshua antes do final de um filme extremamente violento que o deixara irriquieto – como eu já pudera perceber.

— Você é vegetariano, Theo? – perguntei, para mudar de assunto.
— O que você acha?
— Como vou saber?! – não esperava pela pergunta — A única refeição que fizemos juntos foi vegetariana — refleti.
— Achei que você fosse, por isso servi assim. Você é, não é?
— Eu estou. Em casa, oscilo entre ser vegetariano e vegan, uma refeição para cada. E preferencialmente crudivorista.
— É por causa da prática?
— Eu diria que é conseqüência. Aconteceu naturalmente, quando pela primeira vez voltei do mosteiro. Depois de um mês inteiro lá, com dieta vegetariana, simplesmente não tive vontade de voltar a comer carne, aqui no Brasil. Na época, um amigo meu que é nutricionista explicou dizendo que agora que eu tivera o gosto da existência da flor, não ia mais querer viver na mer… Não, não acho que seja por especial crença ou convicção, muito mais por inclinação e experiência. E sempre que me acho muito correto, muito bom, sentindo-me o salvador do planeta, sempre que me pego cristalizando minha prática e fundando certezas, compro uma coxinha com catupiry, e agradecendo ao frango, à galinha e à vaca, devoro-os – sorri — Fora de casa, eu como até lingüiça de javali, o que me oferecerem. Assim é a minha prática. E você?

— Ainda não me decidi… – Theo inclinou a cabeça para o lado e deu de ombros, daquela maneira que o fazia parecer tímido e menor, e quando em mim brotava a vontade de abraça-lo e beija-lo — Outro dia li que o Thom Yorke tornou-se vegetariano para impressionar uma garota vegetariana de quem ele estava a fim… Começou mentindo pra ela que há muito tempo era vegetariano, e de sustentar a mentira acabou virando vegetariano mesmo. Hoje em dia, ele é vegan.
— E você, está querendo impressionar alguém?

— Eu estou. Mas acho que não deveria. Porque todas as qualidades que tenho o levam a gostar de mim, e a me desejar. Mas só através do que tenho de pior ele vai chegar a me amar – Theo não olhava em minha direção quando disse isso, e por um instante temi que não estivesse falando de mim. Mas como para confirmar que tinha adivinhado e sabia do meu compromisso íntimo de dedicar-me a ele, Theo em seguida engoliu-me com seus verdes olhos líquidos, tornados menos tristes e mais belos com um sorriso cristalino no semblante grego.

Em nossa direção, um senhor vinha descendo a avenida com grande dificuldade, praticamente arrastando uma das pernas e parando a cada poucos metros com expressão de dor e cansaço, a mão trêmula sobre uma bengala que mirava não com gratidão, mas com raiva – e foi a expressão atormentada que levantou para nós, parecendo que ia nos dar uma bengalada por sermos capazes de andar com tanta desenvoltura, o que desestimulou Theo a aborda-lo, pois por um instante tive certeza de que iria oferecer-lhe ajuda.

— O que você está pensando? – Theo perguntou-me, quando tínhamos já nos afastado, como se lesse algum indício em meu rosto.

Sorri, ao ver-me assim observado, e surpreendido seguindo uma linha de pensamentos, para a qual Theo vinha ser o sino da plena consciência e interromper. Fiquei calado por alguns instantes, observando minhas emoções, os pensamentos arrefecendo – Pensei se aquele senhor teria desfrutado do caminhar quando podia faze-lo sem esforço… Ou se nunca se importou muito com isso, nem deu bola algum dia… E então pensei se eu mesmo estava desfrutando de caminhar, agora, sem ter de fazer nenhum esforço em especial… Só desfrutando deste corpo com tantos mecanismos disponíveis, dos quais lanço mão diariamente sem muito perceber ou valorizar… Eu caminho, e ao mesmo tempo falo, respiro, enxergo, ouço, e em meu estômago o almoço está sendo digerido e transformado em energia, o que em parte me capacita a continuar dando estes passos, e pensar, falar… Tantas funções maravilhosas e complexas, todas ocorrendo ao mesmo tempo agora… E de repente senti gratidão pela chance de estar vivo, de permanecer vivo a cada palavra que pronuncio e passo que dou, e de ter saúde bastante, nenhum problema grave, podendo caminhar a seu lado nesta noite morna, desfrutando da sua presença e de compartilhar com você – senti que aquela onda de amor invadia-me novamente, e tive receio de embriagar-me dela na frente do meu amigo, então resolvi interromper meu discurso — E você, o que pensou?

— Que eu não vou ficar assim na idade dele – Theo anunciou, com toda a seriedade e convicção de que só a juventude é capaz. Ao ouvir isso, e dentro do papel pretensioso de cover de mestre zen que na companhia dele eu assumia, pensei em dizer que a saúde era uma das coisas sobre as quais não podíamos ter certeza… mas em seguida compreendi que o deus adolescente colocava-me para andar à sua frente por lisura, e só por gentileza seguia os meus passos, em sua educação principesca, pois de fato estava muito adiante de mim, já aos dezenove anos de idade — Não digo quanto ao meu corpo, você entende? – prosseguiu — Mesmo que tenha de caminhar como ele, com dificuldade, seja por doença ou um acidente, o que não quero ter é toda aquela raiva da vida… A revolta… que, reconheço, eu ainda tenho, e bastante – Theo suspirou, exalando longamente, caindo então num silêncio que durou uns vinte metros… Ah!, como fiquei feliz com aquele silêncio entre nós, pois percebia que Theo já se sentia à vontade comigo, e que não tinha urgência de ocupar os espaços vazios, temendo talvez que eu o podasse ou usurpasse… Eu esperava tranquilamente que ele seguisse seu raciocínio até termina-lo, sem interrompe-lo, e tinha a tranqüilidade de poder fazer o mesmo e ser respeitado por ele — Quero poder desfrutar dos meus passos sobre a Terra, mesmo que doam. Não preciso da saúde perfeita nem eterna… mas quero aprender a não sofrer, em nenhuma ocasião, em nenhuma condição. É esse o ensinamento do Buda, não é? A liberação proposta por ele…

— E que tal começarmos agora mesmo, Theo?

Vinte e quatro horas depois de termos caminhado pelo bairro em nosso vigoroso gioco de cura, novamente vencemos as quadras restantes até nosso prédio. Deixamos a bicicleta de Theo na garagem do subsolo e subimos no elevador, tudo em silêncio, sem trocarmos uma palavra nem olhar. Enquanto abria a porta do apartamento, observei meu amigo sentar-se no hall atrás de mim, rapidamente adotando a posição de lótus completa, ali onde o havia encontrado à primeira noite – e onde provavelmente ele estivera esperando-me antes, naquela mesma noite. Adentrei o apartamento sem acender nenhuma luz, e do armário do corredor retirei um mat, que estendi no hall, dispondo um zafu em cada ponta. Theo transferiu-se para eles, dando-me um tranqüilo sorriso de reconhecimento e agradecimento. “Acordei o sino” que havia trazido no bolso – isso equivale a dizer que o fiz soar seco e curto, simplesmente para avisar ao outro que eu iria “convidar o sino” – o que equivale a dizer que iria toca-lo, atingindo-o com o bastão, três vezes, o tinido longo e lindo ecoando pelo hall, subindo e descendo as escadas, dando espaço para três inspirações e três expirações entre cada vez que o convidava a soar. Meu Deus! – a prática ensinada pelo Buda nunca fizera de mim um budista, no sentido de crenças e credos, mas antes aproximara-me de uma certa paz e acordo com a idéia e conceito de Deus — Obrigado – a última coisa que pensei, antes de dedicar-me a afastar os pensamentos desnecessários e acalmar a mente, foi — Obrigado, Theo.