Trecho III – Tea for two

julho 25, 2009

e antes de começar a ler, tendo já começado, você se dá conta de ouvi-la, a silenciosa voz interna que reconhece e soletra os quatro Ts acima?

Leia O diário dos dias extraordinários completo:

Trecho I – Just an ordinary day

Trecho II – If I let you in, I’ll never let you out

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Abri a porta e ele já estava sob o umbral, ocupando todo o espaço da minha visão, como uma visão. Uma cabeça mais alto do que eu, belo, sorridente, os líquidos olhos verdes, parado ali. If I let you in, I’ll never let you out… If I let you in, I’ll never let you out… If I let you in, I’ll never let you out… Never let you out…

— Você pegou chuva? – era uma pergunta estúpida, já que ele tinha os cabelos completamente molhados, os cachos loiros um pouco escorridos. E estava de novo todo de branco, metido numa túnica indiana muito simples, o colorido agasalho desfiado da outra noite amarrado à cintura. Mas eu estava tão consciente da canção — Winter watches over us as we decide… I can see the twilight in your eyes and mine –, como uma armadilha, uma armadilha, a minha denúncia, que precisava dizer qualquer coisa.

— Não, eu tomei um banho – ele riu – Pra você – entregou-me um pequeno pacote, e abraçou-me. E de repente eu soube o que tinha sido tão estranho no nosso encontro daquela manhã, ali naquela mesma porta: a distância entre nós não tinha sido diminuída em nenhum abraço.

Observei-o tirar as sandálias franciscanas ao lado do umbral.

— Não precisa, se não quiser.

— A sua casa não é shoes free? – ele indicou meus pés, apenas de meias.

— Às vezes. Para mim, é. Para meus convidados não precisa ser.

— Eu também prefiro assim.

Assisti-o adentrar o meu apartamento – e a sensação foi a de que não havia mais volta. Alguma coisa importante estava acontecendo, e eu não sabia bem o quê. Talvez não fosse nada, talvez tudo fosse especial, todo o tempo, cada momento. Ichigo ichie. Se em cada encontro a outra pessoa tinha consciência disso também, isso já era especial, e nada de fato precisava acontecer além do que já estava se passando, tudo trivial e especial.

Achei que ouvira ele inspirar fortemente antes de atravessar o umbral, como se tomasse fôlego para mergulhar profundamente, como que pretendendo permanecer muito tempo debaixo d’água. E agora achava que ele estava prendendo a respiração, parado ao lado da porta, só um pouco mergulhado, com os olhos mergulhando mais, absorvendo a sala.

— Bem vindo à minha casa. Es tu casa – ele respondeu ampliando o sorriso que vinha sorrindo desde que eu abrira a porta. E no silêncio que se seguiu a essa minha declaração, depois de uma sessão instrumental de intensa beleza e riqueza, as cordas passeando pelo céu e a bateria fornecendo o chão, e pelo meio um xilofone que era o meu próprio coração, Perry Blake retornou com If I let you in, I’ll never let you out… If I let you in, I’ll never let you out… If I let you in I’ll never let you out… Never let you out… – e repetindo, de novo… Pelo menos eu sabia que a canção estava para acabar, e mesmo que Mr Shuffle estivesse decidido a me aterrorizar, o que poderia ser pior?

Era constrangedor, assim eu o sentia. Olhei-o de esguelha, e ele parecia tranqüilo. Naquele centro do universo onde eu já o tinha visto – ou posto. Ficamos parados ali mais alguns instantes, enquanto ele passava os olhos por tudo, sem dizer palavra – e a música chegou ao fim. Tentando acompanhar o olhar dele, senti quando outro botão play ligou, e o discurso que começou mentalmente foi o do desperdício de tempo e dinheiro empregados tentando pretensiosamente transformar aquele espaço numa afirmação egóica. Stop. Eu já a conhecia de cor e salteado, aquela recente auto-crítica, para continuar acreditando nela. Por favor, deixemos em paz o Jacobsen, o Kjærholm, o Saarinen, o Rino Levi, o Tenreiro, a Bo Bardi, o Niemeyer, e todos os outros… Para que eu mesmo possa ficar em paz nessa multidão. Fiquei em suspenso, sem saber se devia dizer mais alguma coisa, esperando outra música começar. O que poderia ser pior? O olhar dele passeava, e de repente se voltara a mim.

— Você viu as nuvens, hoje? – e de novo os olhos dele estavam dentro dos meus, e neles parecia haver alguma outra pergunta… Você viu as nuvens hoje como eu as vi? Você vê as nuvens como eu as vejo? Você vê as nuvens que eu vi agora há pouco, alguns segundos atrás, você as vê dentro do meu olhar? Ainda estão lá, dentro do meu olhar, para você?

— Estava olhando para elas há um minuto atrás.

Ele assentiu… como se concordasse… como se soubesse! E em seguida:

— Você já foi à Índia?

— Sim – respondi. O apartamento tinha algumas poucas coisas que eu havia trazido de lá, tomando o cuidado para que não fossem vulgarmente indianas, no entanto, ainda assim, ele as teria identificado. E apesar da túnica que ele trajava – E você?

— Sim – ele apontou o pacotinho em minha mão – Trouxe isso de lá. Espero que seja bom. Espero que você goste. Não sabia o que trazer.

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Darjeeling. Tè bianco in foglie. Dall’India da Agricoltura biologica. Equo e solidale – fairtrade. O que mais eu podia esperar do menino — que eu continuava chamando de menino somente por despeito e prudência, para a minha própria segurança, mentalmente mantendo-o à distância – senão a etiqueta perfeita do jovem moderno engajado?

— Podemos experimentar agora mesmo – não era a coisa mais educada a fazer, e eu me dei conta disso, mas já tinha cometido a gafe, apressado como estava por encontrar qualquer coisa que pudesse fazer com o rapaz, passar o tempo… Como ele podia parecer tão à vontade, como ele podia parecer tão satisfeito de estar ali no meio da minha sala, enquanto eu mesmo encontrava-me ansioso e em dúvida – Você bebe chá? – na sua idade bebe-se chá, eu pensei.

— É sempre bom.

— Quando você esteve na Índia? – perguntei, a caminho da cozinha. Ao olhar para trás reparei que seus pés descalços deixavam pegadas de vapor condensadas na cera do assoalho, na verdade uma única pegada a cada passo, muito bem delineada, que em seguida se evaporava, e de novo outra, do outro pé, outro passo, e…

— No início do ano.

— Onde?

— Primeiro fomos a Mumbai, onde ficamos uns dias. Depois seguimos para o spa do Osho – ele me encarou. Parecia que estava me provocando. E me avaliando, pois observava cada movimento meu, enquanto eu cuidava dos preparativos para o chá.

— E como é, o spa do Osho?!

— Na verdade, chamam de meditation resort – ele inclinou a cabeça de leve para o lado, daquela maneira que eu já identificava com ele, desenhando uma interrogação com todo o corpo – É muito bonito. Para um spa.

— E o que você achou… de tudo? – eu tentava ser neutro. Já o havia ofendido antes, na nossa primeira conversação, e não pretendia fazer de novo.

— Na primeira tarde, nadando na piscina, eu soube que não ficaria lá…

— Você não gostou do uniforme púrpura? – e enfim soltei veneno.

— Então você também conhece? – ele estava rindo.

— Não, só ouvi falar – e tinha me libertado — Chão de mármore polidíssimo. Poltronas Barcelona… É assim mesmo?

— É. Senti uma aversão por aquele lugar que não tinha centro nem direção. Foi como um acesso de fúria. E eu soube que não ia ficar… mas também não sabia para onde ir. Era a minha primeira vez, na Índia.

— Tem um museu do Rolls-Royce lá no spa? — ele riu comigo — Por que você escolheu o spa do Osho, para começar?

— Não fui eu. Estava só acompanhando minha mãe. Ela gosta do cara. E eu não quis ficar. Até que ela aceitou bem. Não entendeu, mas aceitou. Para ela tudo era tão lindo, tão relaxante, tão ordeiro, tão inspirador, tão… impecável. Ainda estava como que sedada, naqueles dias… A amiga dela quis protestar, dizendo que eu não podia viajar sozinho pela Índia. Depois, até dei razão a ela. Mas naquele instante eu só queria sair dali, e disse que não pretendia ir longe. Só queria estar num ashram de verdade… quer dizer, mais de acordo com a idéia que eu fazia de um ashram. Para isso eu tinha vindo para a Índia. Não para fazer spa.

— Tem alguma outra coisa ali perto? Para onde você foi?

— Rishikesh.

— Rishikesh! Você disse a ela que não ia longe e foi para Rishikesh! – olhei-o com espanto e admiração, e ele olhou-me de volta sorrindo feito uma criança travessa– Quantos quilômetros são?

— De Mumbai até lá, uns 2300… Mas como eu tinha cogitado ir a Kathmandu numa braçada, ou para Spiti na outra… sabe, foi nadando na piscina do spa que eu decidi sair de lá…

— Você foi de trem?!

— A viagem até Rishikesh… – ele suspirou, erguendo os ombros, parecendo ampliar-se, iluminar-se, imerso em lembranças que o inflavam. Sorria mais, súbito parecia feliz, tornado muito vigoroso, ainda mais alto e forte do que era. Gostaria de fazer-te sentir-se sempre assim, pensei — Daria um livro: Viagem a Rishikesh. Eu te conto, algum dia – ele havia visto um livro sobre a mesa da cozinha, e tomou-o na mão, estava a abri-lo quando deu-se conta… Percebi que ele tinha aquele tipo de intimidade imediata com os livros, dava para ver na maneira como o livro despertara sua atenção e ele o tomara e manuseara, o que me fez sorrir, satisfeito – Posso?

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— Claro.

Olhei-o abrir o livro, e foi neste momento que me dei conta de que, em pouco mais de vinte quatro horas, já sabia que meu novo amigo tinha posto os pés em pelo menos quatro continentes. Observei-o ler um trecho longo de Todos os belos cavalos, e por causa de sua expressão – como se tivesse levado um murro e não pudesse crer ao identificar ser aquele o seu agressor — tive de perguntar, já que ele não parecia disposto a reproduzi-lo em voz alta:

— Tão ruim assim?

— É afrontoso – usou uma palavra que eu nunca havia ouvido na boca de outra pessoa, ou foi – É acintoso – e complementou — É ameaçador — ele sorriu, voltou a folhear o livro e leu mais um trecho. Ao fim, deu uma curta risada seca, indignada, recolocando cuidadosamente o livro sobre a mesa — Deve ser muito bom.

— Pra falar a verdade, estou adorando – tentei não parecer na defensiva, mas senti-me atacado — Você está sendo irônico?

— Depende… – encarou o livro, e passou dois dedos sobre a capa, onde o plástico ressecara e começava a desprender-se — Acho que eu não conseguiria me defender de um autor assim.

Não sei se entendi, mas decidi não avançar naquele assunto. Aberto como eu estava, qualquer coisa que não fosse confirmação e aceitação poderia arrasar-me. Ele podia discordar, mas eu preferia não saber, ainda. A água para o chá estava para ferver. Pedi que ele me ajudasse, retirando a esteira de palha e dois zafu do armário que ficava no corredor, e que escolhesse um lugar na sala e armasse para nós – Escolha algum objeto bonito para colocar junto de nós… qualquer um, da sala.

A proper tea ceremony! – ele exclamou – Do we have a tea master, here?

Not quite so – respondi, falando de mim mesmo, àquela altura tão surpreendido, não só por ser um francês que falava comigo em Inglês com sotaque britânico, mas supondo estar na companhia dum Dorian Gray que já tinha estado em quatro continentes, perguntei – Do we?

Ele sumiu na direção da sala, sorrindo, desafiando-me e dançando uma coreografia viril e desastrada, o deus adolescente. Na minha casa, dançando.

Com o bule de chá e um prato com pêra, a única fruta orgânica que eu conseguira comprar, fiz um desvio passando pelo escritório para verificar: a benção da queda de conexão tinha silenciado Mr. Shuffle. Com bom humor misturado a pavor, vi que a canção seguinte na playlist era a versão francesa de Just an ordinary day — Je rêve de toi – badabadaba… Plus près de moi- badabadaba – que havia de fato começado a tocar, os primeiros 10 segundos. Que auspicioso!, pensei. Desliguei o computador sentindo-me supersticioso. Jamais pudera pensar em Perry Blake como perigoso – ou que escuta-lo fosse audacioso! Fiz uma pausa para inspirar e expirar longamente, e disse a mim mesmo: ponto final. E com um sorriso sai caminhando lentamente, sem pressa de chegar, e chegando a cada passo.

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Ele tinha escolhido um canto junto às nuvens, na quina dos janelões com a porta envidraçada comunicando com a varanda que corria ao longo dos quartos, e em lótus perfeita aguardava-me.

— Não encontrei nenhuma flor, mas mesmo assim… – havia escolhido um vaso de cerâmica rústica para colocar sobre a esteira de palha, uma das minhas preferidas, do excelente ceramista japonês Ken Mihara, que fazia suas peças parecerem obras da natureza mais do que obras de arte, e esta era a sua arte maior. Tinha sido um teste, admito, e peguei-me sorrindo, satisfeito. As almofadas estavam eqüidistantes – na verdade, estava tudo eqüidistante, entre si e das vidraças e da porta, geométrico. Com quatro elementos, ele havia criado um desenho e um ambiente, bem mais do que simplesmente disposto almofadas sobre uma esteira. O vaso sem flor fora colocado um pouco deslocado, era o único objeto fora da simetria por ele criada, realçando-o, e à sua qualidade e aparência de pedra, a sutil pintura esverdeada como se fosse um delicado musgo. Admirei isso nele, e iria admirar outras vezes: a imensa capacidade para criar todo tipo de beleza, simples, mínima, intensa.

— Acho que terei flores hoje à noite – sorri, sabendo da visita de Lissa, sabendo de como Lissa era — mas por ora, temos de nos contentar com as nuvens – e naquele instante, inusitadamente próximas ao prédio, a uns poucos metros de distância da janela, um bando barulhento de sete ou oito maritacas cruzou o céu à nossa frente, subindo em vertiginosa vertical, como se perseguissem algum outro pássaro e estivessem decididas a expulsa-lo desta atmosfera, e de repente mergulhando novamente, vertiginosamente, em direção ao solo — e assim desapareceram e silenciaram. Como se nunca tivessem existido, aquelas maritacas de rapina.

— Vamos ficar em silêncio? – ele perguntou, quando eu retornei com os dois copos de cerâmica – É assim que se faz, lá no mosteiro?

— Começamos em silêncio, e depois podemos conversar – disse, ajoelhando-me. Sem deliberação da minha parte, todos os meus movimentos haviam se tornado lentos, embora lentos eles não fossem – só me pareciam lentos, inusitados, ao sentir-me concentrado. Como se encontrasse novidade em fazer as coisas de sempre, estender um braço, erguer a chaleira, sentir seu peso, o calor nos meus dedos, o brilho da cerâmica adentrando meus olhos, o reflexo distorcido das nuvens na superfície negra pintalgada e escorrida de branco, e então ele perguntou, quase num sussurro:

— Amigo, como eu medito, bebendo chá?

A cascata luminosa caindo em curva com o som de passarinhos gargarejando, o turbilhão mínimo e as bolhas ínfimas que afloravam, a súbita erupção de vapor, um delicado perfume libertado, as pequenas gotas que em seguida se formavam ao redor da borda do copo, o tom levemente rosado do chá branco – e meu coração imediatamente aquecido. E eu lá sei, pensei, como se bebe chá? Com uma reverência, à qual ele respondeu demoradamente, entreguei a ele o copo e disse:

— Bebendo nuvem.

Leia o Trecho IV – Last flowers

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