Trecho XII – How to disappear completely

outubro 15, 2009

Eu? Eu sou um príncipe adormecido,
cujo amor o acordou para um novo sono.
Eu sou um mendigo do amor, de mochila rasgada,
e que coloca o amor dentro dela.

Schmuel Iossef Agnon

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Obrigado, desfrute!

Talvez tenham se crumprimentado no térreo, Donita e Divino. Enquanto observava os números decrescerem, levando Donita de volta ao solo, o interfone tocou para avisar da chegada do encanador. Recebi-o alegremente, agradecido. Há pouco Lissa indagara como seria um Theo banguela e eu me lembrara de ter assistido a um vídeo com o Chet Baker nessa mesma condição, então não fiquei realmente surpreso que o encanador — apesar de não ser banguela — me lembrasse o músico que eu trouxera mais próximo do coração toda a minha vida – fez-me sorrir com carinho o reconhecimento de um certo cuidado com o topete e o queixo pequeno no maxilar amplo. Sabendo não tratar-se do Chet, e quando ele já se instalava no lavabo, depois de ter-lhe contado sobre a inundação, perguntei-lhe o nome, para poder oferecer a ele algo de beber.

— Divino – disse-me quase em dúvida, e talvez intimidado pelo sorriso que seu nome aflorou nos meus lábios, acrescentando bastante profissionalmente — Estou aqui para estar tentando ajudar o senhor da melhor forma possível.

Ichigo ichie, pensei a caminho da cozinha. Cada momento, um encontro. E quando retornei com o copo de suco de uva que ele havia aceito, informou-me que o problema estava no reparo da válvula.

— E você pode reparar o reparo? – não pude evitar o trocadilho bobo, pois estava feliz feito criança vendo meu problema solucionado pelo Chet cover.

— O senhor pode ficar tranqüilo que vou estar fazendo o meu melhor – ele soava muito sério, e eu percebia que se tratava de um esforço por inspirar-me confiança – O senhor teria um pano de chão para nós termos a garantia de que o senhor não vai ter o seu patrimônio danificado no puro acaso de alguma ferramenta escorregar? Não deveria no entanto acontecer porém…

Quem será que ensinou essa oratória a ele, pensei, enquanto buscava por um pano que não estivesse demasiado úmido, dos que Donita pendurara no varal. De volta com o pano e um copo de chá, deu-me vontade de conversar com o Divino, enquanto ele trabalhava tranqüilamente — embora aparentasse um pouco de tensão, fosse pelo fato de eu permanecer ali, como se estivesse inspecionando o seu trabalho, ou por ter logo de início perguntado há quanto tempo ele vinha trabalhando “naquele ramo”, como se duvidasse da sua experiência.

— Trabalho desde os quinze anos de idade. O senhor pode ficar tranqüilo que esse é um reparo simples que eu vou estar desempenhando com a máxima qualidade — o rapaz devia ter pouco mais de vinte anos, e sentia-me comovido não só com sua maneira rebuscada mas também tão errada de falar gerundiando, ambas no empenho por parecer profissional, mas sobretudo agradecido por sua presença no meu apartamento, e por estar resolvendo o meu problema. Num instante, eu já o enxergava como o bodhisattva dos canos, e ao perguntar sobre seu cotidiano trabalho ele foi me respondendo – e eu nunca conseguiria reproduzir seu vocabulário profissional virtuosístico — sobre as residências que visitava, as pessoas a quem encontrava, sempre com muita discrição, e apenas mais veementemente protestando sobre o trânsito e a dificuldade de estacionar que diariamente enfrentava, e a ansiedade e a pressa e a impaciência e o stress e o mau humor das pessoas com quem lidava, que afinal “apresentavam os problemas dos quais pretendia proporcionar a melhor solução”.

— Nem todos são calmos assim como o senhor. Nem tão gentis – disse-me, olhando na direção do copo de suco que eu colocara junto dele, sobre a pia, e do qual ele ainda não bebera.

— Você gosta do seu trabalho, Divino? – sorri ao pronunciar o nome dele, como se a melhor percepção de um poema pudesse advir do título mais adequado… Ichigo ichie – ao menos para mim, funcionava, e eu prestava atenção àquilo que naquele momento acontecia — que outro didático nome poderia ter o bodhisattva do conserto que vinha à minha casa? Olhava o rapaz de vinte e poucos anos e comovido podia enxergar o bebê que ele fora, crescendo sob os cuidados de tantas pessoas, família, médicos, professores, amigos; pensei que ele tinha precisado aprender a caminhar, a ler, a escrever, a falar, tanto caminho e esforço e empenho e estudo da parte daquele rapaz e de tantas pessoas envolvidas em sua vida até ele chegar em minha casa para poder resolver o meu problema, tendo investido tanto tempo e talento em tornar-se quem era, o bodhisattva Divino… Podia ver toda uma cadeia de amor fluindo até aquele momento, fosse na forma de estudo ou de alimento – Ichigo ichie.

— É um emprego bom, se é isso que o senhor pergunta – vi que ele nunca refletira sobre o assunto, e empolguei-me.
— O seu trabalho é muito importante, Divino. O que seria de mim se você não tivesse vindo aqui, hoje? E em cada casa que visita, você leva seu conhecimento e soluciona um problema, dando paz a uma pessoa, uma família. O seu trabalho promove bem estar, Divino – por um instante, enxerguei-o como um oficiante diante do altar, e não como um encanador ajoelhado em frente ao vaso sanitário – Todo o seu estudo, a sua educação, o seu conhecimento… O seu trabalho é precioso. Obrigado, Divino – depois, ele iria contar-me que em muitos dias eu tinha sido o único cliente a perguntar pelo nome dele, e não por uma questão de segurança.

O rapaz olhou-me surpreso, e emocionado como eu mesmo estava. Como não estar agradecido? Em alguns poucos minutos ele resolvia o meu problema, que por mim mesmo jamais daria conta de resolver – mas o que para mim eram poucos minutos tinham custado anos de empenho e preparo ao rapaz. Em seguida, ele me confessou que com esse emprego tinha enfim podido fazer o próprio casamento, e agora “providenciava” para ser pai, a esposa grávida de quatro meses. Cada pessoa é um universo, lembrei-me novamente da minha frase tema da adolescência, que podia ser uma tradução particular de Ichigo ichie — e a cada momento e encontro era a possibilidade de universos tocarem-se, trocarem-se… E no lavabo reparado, estava lá o Divino, mergulhado meditativamente em seu copo de suco, e eu cá no meu copo de chá, retornando à minha respiração… Era o suficiente, para mim e para ele, e pensei em encerrar ou mudar de tônica oferecendo-lhe mais suco.

— Obrigado, está muito bom. Mas não posso beber muito pois só vou estar podendo ir ao banheiro na empresa – e como eu abrisse as mãos num gesto indicando que ele já se encontrava dentro de um, naquele exato momento, retrucou – Nós não estamos autorizados a estar utilizando o banheiro das residências dos clientes.

— Então hoje você vai quebrar a regra, Divino, com a minha autorização, e usufruir em primeira mão do reparo que você mesmo trocou! – e como fui saindo do lavabo e encostando a porta, vi-o encarar-me surpreso, quase deslumbrado, e então resolvi oferecer-lhe, ao invés de mais suco, o oolong que estivera tomando, explicando sua procedência.

— Vai estar sendo fabuloso, muito obrigado! – ou foi formidável que ele disse? Alguma palavra assim, incomum e inesperada para um chá, fazendo-me sorrir, mas que em minha mente e memória diluiu-se naquela horrível gerundiação.

Ichigo ichie. E este foi meu encontro com o Divino, que encerramos compartilhando chá e o chocolate que Donita espontaneamente comprara para mim. Cada momento, um encontro. Assim senti que honrara a visita do cover de Chet Baker, e não só ao cuidado com que penteava o topete mas a toda a sua história, estudo, esforço e empenho que possibilitava-o ajudar-me, naquele momento. Senti que havia praticado gratidão ao invés de simplesmente receber os seus serviços, e que assim havia me conectado a uma cadeia de amor da qual Divino era o elo que viera até mim – e nele o seu pai e sua mãe, seus avôs e avós, os irmãos que porventura tivesse, e os amigos, os mestres, os feirantes, os lixeiros, os bancários, todas as pessoas que tornavam a vida dele possível e a mantinham, com carinho, com amizade, com trabalho — e portanto a minha também. E, por fim, a esposa e o bebê divinos, que pelo carinho demonstrado em sua voz o faziam feliz, e permitiam-no trabalhar em paz e empenhado…

Como amar mais? Por um momento a pergunta adequada pareceu-me ser – como não amar completamente?

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O tema das águas permaneceu, e com ele a presença de Divino, durante o banho que em seguida tomei. Pareceu-me milagroso o jorro de água – e de nuvens — que brotou de dentro da minha parede em meio ao céu, carregado onze andares acima da terra. Todos os divinos encanadores e pedreiros e todos os trabalhadores permitindo-me o banho – enquanto outras pessoas sequer tinham acesso a saneamento básico, entre elas encanadores e pedreiros. Tinha consciência das minhas condições privilegiadas, e refleti sobre aquele jorro de amor, de empenho, de esforço, de conhecimento, de memória, de engenhosidade tanto quanto de humanidade, e pensei em quantas histórias naquele jorro havia, quantas mães e pais e esposas e… elos numa abundante cadeia de generosidade que eu utilizava como?… e para quê, afinal?

Ainda no tema das águas, pareceu-me por bem transformar o meu banho milagroso em palavras amorosas, e depois de, quase com lágrimas de gratidão – e nuvens em minhas lágrimas — comer a salada que Donita deixara pré-preparada, liguei para Verena.

— Querida… – no mesmo instante, veio-me à memória a risada de Gustavo, e a voz dele ao telefone, e o fato de que eu nunca mais iria chamá-lo de querido… – Como você está?
Verena permaneceu em silêncio por muito tempo, e só sabia que ela estava do outro lado porque a ouvia respirar. Permaneci em silêncio também.
— O mais difícil é a memória…
E de novo um longo silêncio, até que eu perguntei – Como assim?

— A memória do meu corpo. A memória dele no meu corpo. Da presença dele. Eu sei o horário de ele acordar. Nem preciso olhar no relógio. Eu sei quando ele se movimenta. Quando toda a casa vai se movimentar. Toda a minha atenção se movimenta, quando ele se movimenta. Às vezes ainda fico esperando ele acordar. Um cheiro de criança grande, que eu adoro. Os chinelos arrastando, quando não descalço. As portas dos armários e do banheiro batendo – silêncio, e um silêncio atento, expectante, como se ela tentasse ouvir — Ainda coloco a mesa para nós dois. Às vezes paro no meio do caminho, com duas xícaras na mão. E não são para mim e para o Olaf. O Olaf está aqui em casa. Mas as duas xícaras não incluem o Olaf. Se eu vejo o Olaf sentado lá, então eu pego três. Da primeira vez que fiz isso o Olaf me perguntou… Estamos esperando alguém? Eu parei diante dos três pratos sobre a mesa, e fiquei olhando. A memória dele em mim. Só quando comecei a chorar o Olaf entendeu… – um suspiro, mais como um gemido, silêncio — Não vou tomar banho porque sei que é o horário de ele chegar da faculdade. Ou do futebol. E eu sei que ele chega suado e cansado. Prefiro deixar o banheiro livre para ele. O do quarto dele está sem água quente. Prefiro espera-lo, para poder vê-lo. E ainda espero – silêncio, longo, longo; era como um ligação ruim à distância, em que às vezes perdia-se o contato, assim eu tinha dúvidas se Verena continuava ao telefone — Ontem à noite, mesmo. Eu fico esperando, e fiquei esperando, num estado meio letárgico. Como se eu estivesse anestesiada. Então uma dor horrível, que eu acho que não vou suportar, me desperta. Não sei se vem da cabeça ou do meu coração. Não é a lembrança. É só a dor da lembrança. É mais como se o meu coração explodisse. E sangue me inundasse por dentro, de todas as direções. E eu fosse explodir, também. Sinto-me quente e gelada ao mesmo tempo. E inundada. Mas inundada de uma coisa ruim, horrenda. Da qual eu não quero ser inundada. É… como se… debaixo da minha pele eu já fosse um cadáver, podre, nojento. Que eu não quero ser. Mas ele já… é… – silêncio, e a respiração de Verena tornou-se tão pesada e agitada que eu não podia ter dúvidas de que ela estava lá. Agoniou-me de tal forma que pensei imediatamente dizer que estava a caminho, quando ela prosseguiu – É tudo físico. Bem físico. Eu não sei evitar. Nem controlar. Nem me livrar. É como se fosse um aviso. Um despertador… Quem inventou essa palavra, hem? Desperta-dor… É isso mesmo. Para me avisar que ainda estou viva. Mas só eu. Desperta a dor. Uma sirene de dor. Ouve, acorda, vai, desperta para a dor… – a voz dela enfraqueceu — E então eu me lembro. É assim que eu me lembro. Ele não está. Ele não vem mais. Ele não vai acordar.

— O telefone toca. Na mesma hora é como se um radar funcionasse. Ele está em casa ou não? Não ele não está em casa… Não ele ainda não chegou. Tantas vezes disse isso pros amigos dele. Ou então… só um momento, vou ver se ele pode atender. E se ele não está, o radar funciona de outro jeito. Quando o telefone toca, tento adivinhar se será ele para avisar-me… A cada vez eu temo um pouco… será que está tudo bem? Agora não há mais nada a temer… Nem outra resposta a dar. Não ele não está em casa. Mas o radar continua a funcionar. Ele está aqui em casa? Ele já chegou? Será que é ele do outro lado da linha? Será que está tudo bem? – a voz de Verena quebrou – Eu ainda pedi para ele não sair aquela noite… Porque parecia que ia chover… Sabe o que ele respondeu? – e então Verena começou a chorar, como eu não a ouvira chorar jamais, não pela morte de nenhum familiar ou amigo, não quando da separação de Olaf – Ele disse… Ninguém nunca morreu de chuva, mãe!

— Verena… – e só o que pude fazer foi ficar ali, sentado diante do meu computador, sentindo-me estúpido diante das mensagens estúpidas baixe os melhores toques clique e fique sabendo já imperdível 12X R$ 39,oo frete grátis, e tive de desliga-lo, enojado. Surpreendi-me com a noite, a luz branca das nuvens. Tinha vontade eu mesmo de chorar, e acompanhar o choro de Verena, mas imaginei que só iria piorar para ela, então voltei-me à minha respiração, à dor que sentia no meu próprio peito, incomparavelmente pequena diante da dor de minha amiga. Foi quando ouvi a voz de Olaf, o sotaque inconfundível e uma certa rispidez que os anos não haviam abrandado, não para a minha percepção, não em minha memória – nunca tínhamos nos tornado amigos –, e me identifiquei. Ele avisou-me que iria desligar porque a Verrrena não estava mais em condições de falar, e foi quando a ouvi erguer a voz, e o ruído do telefone sendo novamente trocado de mãos, ou talvez arrancado, como o barulho de um baque me fez supor — Pior do que não ter mais ele… É ter o Olaf de novo aqui em casa! – Verena sussurrou, mas se o ex-marido estava por perto provavelmente teria ouvido, e riu, retornando ao tom normal – Obrigado pelo desabafo. Ainda não tinha acontecido. Com ninguém. É, só tinha de ser com você, havia de ser pra você… – cantarolou e eu sorri, ao recordar-me que nas piores situações Verena sempre tinha me contagiado com sua vasta alegria e me inspirado uma capacidade de recuperação e de otimismo que eu nunca tivera, mas das quais desfrutara através de nossa amizade, e soube que não seria diferente com sua própria vida e dor pessoal – O Olaf está com ciúmes… – Verena voltara a sussurrar — Você precisa ver a cara dele, lá do outro lado da sala… Os anos passam e os anos não passam… Ele sempre teve ciúmes de você, e continua tendo… – e você, minha amiga, continua estimulando isso, eu não pude dizer – Dan, que palavras sábias você tem para mim? – Verena era uma das poucas pessoas, fora da minha família, que me chamava de Dan, diminutivo para Andante.

KALINA3e

— Eu?! Você é quem tem as palavras sábias, querida. E as atitudes sábias também. Sou seu aprendiz – era verdade, parecia-me que eu era disciplinado em cultivar diligentemente a paz que ela já tinha e da qual desfrutava, naturalmente — E como tal, lembro-me de uma coisa que você me disse ao final de um dos meus relacionamentos, já nem sei qual, pois foram tantos os finais, e talvez você tenha me dito isso mais de uma vez… Guardadas as proporções, pois um namoro é só um namoro, e tem um fim que não é um fim… Enfim, você me dizia… não fique triste porque algum dia acaba, fique feliz porque algum dia começou… Você pode ser feliz porque teve o quanto teve, porque afinal teve o quanto teve, você me perguntava, ao invés de nunca ter tido nada, ou no final é tão ruim que você preferia nunca ter tido?

— É… – ouvi Verena sorrir – é o tipo de coisa que eu sou capaz de dizer…

— Pois sabe que eu ouvi algo muito parecido de um monge, lá no mosteiro? Ele contou-me de uma mãe que, muito tranquilamente, e com muita sinceridade segundo ele, falou da morte da filha aos treze anos. Ela dizia estar grata por todo o tempo vivido junto à filha, e que aqueles anos a alimentavam ainda, e provavelmente para sempre. Ela estava sendo genuína, soava verdadeira, segundo o monge, meu amigo. Não estava somente procurando conformar-se, ele percebeu, ela havia de fato com o tempo chegado a um termo e uma aceitação, e a gratidão tinha sido o caminho. E dentro da prática da nossa tradição, ela conseguia olhar-se e reconhecer os traços da filha nela mesma, a presença da filha nela mesma, o quanto da vida da filha havia na vida dela, agora… Ela enxergava presença e continuação onde outros só enxergavam ausência e interrupção. Como a felicidade vivida ao lado da filha durante todos aqueles treze anos era uma parte importante da felicidade que ela continuava cultivando. Como a felicidade dela era a única continuação possível e conseqüente da felicidade compartilhada com a filha. E não a tristeza. Cultivar a tristeza agora seria desprezar a vida da filha, e a presença feliz da filha na vida dela – percebi-me um pouco empolgado, talvez desconsiderando Verena e sua sincera tristeza, o cabível luto, e fiz silêncio, buscando acalmar-me, voltando-me à minha respiração.

— Agora estou entendendo melhor o que o seu amigo disse…
— O monge? – perguntei, já que ela parecia precisar de diálogo para continuar com sua própria linha de raciocínio, senão perdia-se, fechava-se e emudecia.
— Não. O da igreja.
Fiquei confuso por um momento. Monge, mosteiro, eu havia mencionado há pouco. Igreja… — O Theo?!
— Não sei o nome dele. Aquele que foi com você, lindíssimo….
— O Theo. O que foi que ele disse? – percebi-me ansioso. Tudo o que viesse da direção dele já me interessava, inclusive o que não me dizia respeito.
— Foi como se você tivesse trazido o anjo à missa – Verena suspirou e reuniu forças para continuar – Ainda me lembro direitinho, quando ele me abraçou e disse… Talvez seja um poema… As folhas parecem filhas da árvore. Mas quando elas caem, elas se tornam mães da árvore, alimentando-a. Assim as folhas não morrem nunca, pois passam a viver na árvore…. Foi alguma coisa assim que ele disse. Bem no meu ouvido, dentro daquele abraço maravilhoso… Então eu quis olhar de novo para ele… Tão lindo! Ele tem um olhar doce. E foi quando perguntei se ele conhecia o Gustavo – era a primeira vez que Verena pronunciava o nome do filho, em nossa conversa – E ele respondeu… Mas a maneira como ele respondeu… Olhando-me nos olhos… E ainda me segurando… me envolvendo… me protegendo… Ele abriu um buraco cósmico naquela fila… – sorri à expressão preferida da minha amiga – Na verdade, ele fechou. Pois quem abriu foi você… Ele respondeu… Estou conhecendo agora. Ele disse… – e a voz dela tremeu – Muito prazer, Gustavo… e então se debruçou e de novo me abraçou.

Silêncio, e nele pude dar conta da minha emoção. Não estava nem um pouco surpreso com as palavras de Theo, pois conhecia a origem e fonte delas, que eram o nosso mestre. Nem mesmo com o fato de ele ter tido a presença de espírito, e em parte a coragem, de menciona-las a alguém que ele não conhecia. A sabedoria. Não me surpreendia ele as ter dito de maneira tão adequada, sensível, delicada, à pessoa certa, a uma pessoa que poderia compreender e se beneficiar delas – como ele pudera julgar com tanta precisão, como intuir tão rápido — apesar da ocasião tão difícil… Quanto mais o conhecia mais o julgava especial e maravilhoso. E eu me sentia orgulhoso, como se Theo fosse obra minha… Não me sentia paternal, sentia-me… amoroso. Foi quando a campainha soou – na casa de Verena, que tentava combinar comigo um encontro depois da partida de Olaf, naquela mesma tarde.

— Devem ser meu irmão e minha cunhada, para irmos ao aeroporto… Bom, se você não pode vir porque vai encontrar o Theo… Esse rapaz tem mesmo nome de Deus?! Depois vou querer saber tudinho… Você trouxe ele da França com você? – por um instante, pareceu-me que Verena entrava noutro buraco cósmico, onde Gustavo ainda não morrera – Que tal você traze-lo aqui? Adoraria vê-lo de novo, e poder agradecer! Vocês podem? Querem?

O apartamento estava às escuras, e preferi mantê-lo, e assim também às minhas emoções, em volume baixo. Depois de ter lentamente comido mais da salada de Donita à luz de uma vela na cozinha, voltei ao escritório, decidido a ouvir as músicas que Theo havia gravado para mim, antes de reencontra-lo. À luz do Titanium redivivo, vi que uma das playlists no pen drive era das mínimas músicas eletrônicas que haviam tocado enquanto conversávamos e ele cozinhava. Escolhi a outra, marcada E.S.T., porque por um instante acreditei que podia ser uma trilha sonora, confundindo com O.S.T. Começava com uma versão ao vivo, sem o chiado de rádio na introdução, mas num instante, minha pele arrepiando-se como da primeira vez, depois da entrada em lamento do baixo profundo, pontilhado pela bateria num borbulho, reconheci o piano que em gotas adentrava e súbito aflorava num maravilhoso jorro – era a música do nosso nascente! Ainda não havia terminado de ouvir a trilha, eu ainda nadava, ou boiava, em algum lugar entre o Mediterrâneo e as estrelas, carregado pela corrente de piano, quando o telefone tocou.

— Você quer subir?
Embora não tivesse pensado nos filmes que levaria, escolher três dentre os que possuía foi fácil, a começar por A Vida é Iluminada, e o fiz pensando em Theo, ou assim imaginei – em seguida pus-me porta afora, escadas acima, a paz a cada passo, com certa ansiedade, e muita alegria. Encontrava-me quase exultante, e por instantes senti como se não estivesse apenas subindo a escadaria do prédio, antes como se realizasse uma espécie de ascensão, a minha espécie de ascensão, a minha ascensão, em direção ao menino que tinha nome de Deus e morava no topo, à minha cabeça, na cobertura de onde eu morava… Parecia-me tão claro, tão perfeito, tão belo – como o próprio Theo.

Era um Theo diferente o que me aguardava, no entanto, no topo da escadaria, do outro lado da porta, na cobertura às escuras, no ar abafado da noite que continuava prenunciando chuva — ou assim eu continuava imaginando. Desinteressou-me a árvore plantada no bote, desistindo de deslizar em minha imaginação, definitivamente à deriva, quando ele me perguntou à luz azulada emanando da luminária em forma de cuia negra:

— Hoje não foi um bom dia de se viver, né? – havíamos parado no centro do salão, em meio a mais pilhas de livros e de caixas do que ontem havia, ou pelo menos foi essa a minha impressão na segunda visita ao espaço de Theo.
— Por que não? – na minha disposição divinizada daquele momento, intensificada por estar na presença do deus adolescente, a pergunta não pôde me parecer mais díspar.
— A sua casa não até inundou? – Theo inclinou a cabeça, lindamente confuso e surpreso.

Contei a Theo o estado em que me encontrara antes da inundação, devido a um copo de chá, e ao qual rapidamente retornara depois dela, e da visita do Divino.
— Você me ensina a viver assim? – olhando-me surpreso e comovido, Theo tocou meu rosto numa carícia como uma súplica.
— Assim como, Theo? – comecei a dar-me conta de que nos encontrávamos em distintos estados de espírito, mas ainda não percebera o quanto.

— Nesse estado de êxtase em que você vive… – e ele retirou a mão do meu rosto, antes que me arriscasse a tentar mantê-la lá, segurando-a com minha própria mão, ou então, se é que eu teria coragem, retribuindo a carícia no rosto dele.
— Eu não vivo num estado de êxtase, Theo… – eu não vivo num estado de êxtase, meu Deus… Em minha mente, era como se duas conversas estivessem ocorrendo… Lembrei-me daquele livro, Conversations with God, que eu nunca tinha lido afinal… esperando pela surpresa de vive-lo, talvez?

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— Nesse estado de contentamento, então. Você parece sempre tranqüilo, com uma satisfação pelas coisas mais simples…
— Não foi sempre assim, Theo. Isso é a prática. E você já me viu bem frustrado, com coisas muito pequenas, como o barulho dos gêmeos…
— Mesmo assim. Para tudo você tem uma prática. Para cada situação você busca a atitude que te pacifica… Sobre cada coisa você põe esse olhar que te salva…
— Eu repito, Theo. Não foi sempre assim. Não mesmo. Isso é a minha prática, hoje em dia.
— E essa prática é o quê?
— É o próprio modo como eu vivo. Inclui tudo. Está em todo lugar, em cada momento – apesar da minha sinceridade, senti-me pretensioso, e Theo mostrou-se frustrado.

Só vim a começar a perceber que naquela noite estávamos em lugares distintos, com a pergunta seguinte de Theo — Você já pensou em suicídio?
— Por que, Theo?
— Não sei… Aquela música de que você falou hoje.
— A do Radiohead? – a canção para a qual ele havia dito cool?
— É. É uma música sobre desespero. Sobre suicídio.
— Nunca pensei nela assim, Theo – nunca havia pensado muito sobre aquela canção, satisfazendo-me com a linda melodia, a bela voz do Thom Yorke, e a confirmação de que mudar de vida já não era sem tempo — Não acho… Não concordo – notei a inquietude de Theo aumentando a cada instante, a cada palavra minha, e a cada palavra dele mesmo, também. Reconheci aquele seu olhar que eu havia chamado de A Tristeza do Mundo — Por que hoje foi um dia tão ruim para se viver?

— Você não tem idéia de que dia é hoje! – Theo deu um passo atrás, afastando-se de mim, e fez também um certo movimento com os braços que eu percebi mas não acompanhei, assim como o seu olhar, que eu não segui, voltado para baixo.
— Hoje é véspera da lua cheia, Theo! – ainda não percebera para onde a conversa se encaminhava, onde Theo estava… Eu continuava encastelado em mim mesmo, em minha sensação de satisfação que eu tentava prolongar, ele tinha razão – Que dia é hoje, Theo, para você?

— É o aniversário do meu irmão.
— O irmão de quem você já me falou? O da jabuticabeira? – sorri contente, aquela era agora uma memória querida para mim mesmo — A quem você ama tanto? Por que o dia do aniversário dele não seria menos do que maravilhoso? – lembrei-me que aquela tarde em casa fora a primeira vez que o vira chorar, e comecei a me dar conta de Theo, do Theo que estava diante de mim, e não da imagem dourada e quase mítica que tinha dele, e que procurava manter… eu não estava conseguindo alegra-lo, nem poderia — Ele não pôde vir ao Brasil?

— Ele morreu… — foi a maneira como ele disse. Senti um arrepio. Theo afastou-se mais um passo, eu percebi, e comecei a contar, agoniado — Como esse dia pode ser bom?

— Quando você soube, Theo? – entendi que ele tinha acabado de ter a notícia da morte do irmão, e só então ele percebeu minha confusão, o que pareceu desanima-lo mais ainda. Seus ombros vastos estavam encolhidos.
— Faz dois anos que ele morreu. E desde então o aniversário dele é o pior dia… É tão injusto, eu estar vivo ainda, e ele não estar mais…
— Por que seria injusto, Theo? – apressei-me em interrompe-lo. Angústia, era como se ele respirasse, engolisse e suasse angústia. E à minha pergunta, Theo mirou-me daquela maneira quando ponderava se devia falar ou não, expor-se ou não, abrir-se ou recolher-se, e fugir.

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Ainda não tinha percebido o rumo já tomado por nossa conversa, ainda não havia percebido o lugar em que Theo se encontrava, ainda não havia percebido aquilo que ele me mostrava, até que finalmente acompanhei seu olhar… Como é difícil compreender o outro… Como é difícil sair de si mesmo e estar com o outro… No outro… Sem estar pensando… O que eu posso fazer? Como eu posso ajudar? Sem tanto eu, eu, eu, sem o eu! Olhei os antebraços de Theo, e como é a minha parte preferida num homem, e os dele eram lindos, os pelos loiros naturalmente penteados… A ironia estava em que primeiro entrei em contato com o meu desejo, uma pequena vertigem, o meu, o eu, e querendo fazer o dele meu, o ele, eu… E a lição, quando por fim, com um arrepio beirando a náusea, finalmente consegui enxergar o que Theo estava olhando, intrigado, ele mesmo em dúvida. Nunca tinha conhecido alguém que as tivesse. Nunca antes tinha visto cicatrizes assim, cruzando os pulsos, separando-os. Para sempre, ainda que tivessem sido recosturados. Era uma cicatriz horrível, uma cicatriz tremenda, de uma escolha, de uma tentativa frustrada, de um erro, para sempre. E que Theo as tivesse doeu-me. Pois eu não queria que ele as tivesse. E ele as teria, para sempre. E eu não queria que ele as tivesse, nunca. Não queria que ele quisesse, que tivesse querido. Querido…

— Theo… – mas ele não me olhava, quando eu comecei a chorar, e quando tentei abraça-lo e envolve-lo. Mas ele era tão mais alto do que eu, tão maior do que eu, tão mais vasto, embora não fosse nem tão maior nem tão mais alto ou vasto, só mais alto e maior e mais vasto… Senti que não sabia envolve-lo, e que não sabia abraça-lo, que não tinha aprendido ainda, apesar do tanto, nos últimos dias… Senti também que ele hesitava, que ele ponderava, como se não estivesse certo de querer dar aqueles passos em minha direção, numa direção que seria nossa. Senti a hesitação dele, o que fez aflorar em mim a rejeição que na minha essência mora, com a qual não sei lidar, e na seqüência percebi minha vulnerabilidade, uma dor antiga, exausta, e a agressividade era a defesa seguinte… Tudo passava-se em segundos, e eu me observava e o observava como se estivesse assistindo dois atores, enquanto outra parte de mim aspirava por clareza mental, por presença plena e calma e aberta… Eu queria envolve-lo, mas uma parte de mim entendia que se o menino tinha sido tão machucado a ponto de querer machucar a si mesmo, então eu não podia adentrar sua arena para machuca-lo mais ainda, e compreendi que talvez fosse aquela a sua hesitação, que o afastara e tornara seu corpo um pouco rijo. Eu o puxava em direção a mim, e no entanto sentia que ele não vinha. Ele vai me machucar mais, ou ele vai me curar talvez? – foi o que li, foi o que ouvi. Meu desejo pode machucar, este que vê os antebraços lindos e não enxerga as cicatrizes… Quando as teria visto, se ele não mas tivesse mostrado? Quanto demorara para enxergar, mesmo ele mostrando-mas? Quase no início daquela conversa ele tinha virado os pulsos para mim, e eu não enxergara, eu não quisera enxergar, não olhara naquela direção para não excitar o meu desejo… Músculos, pelos, e súbito meu desejo pareceu-me uma loucura, ficou tão claro, quando me fazia perder a pessoa diante de mim, reduzindo-a a músculos, pelos… A vertigem duma ilusão. Meu desejo pode machucar mais, mas o amor pode talvez curar – como amar mais? como amar tudo? como amar por completo? como amar o bastante? como amar até o que não consigo amar? — e então, tomada a decisão, insisti e puxei-o com mais força junto a mim. Foi um pouco tacanho, uma luta velada, até que, tomada a sua decisão, assumindo o risco, ele começou a chorar também, e encolhendo rendeu-se ao meu abraço.

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