Trecho V – Als das Kind Kind war

agosto 5, 2009

A meditação é a inocência do presente.

Jean-Yves Leloup

Leia O diário dos dias extraordinários completo:

Trecho I – Just an ordinary day

Trecho II – If I let you in, I’ll never let you out

Trecho III – Tea for two

Trecho IV – Last flowers

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— Amigo, como eu faço para meditar, comendo a pêra?

— Desfrutando do sol, neste dia nublado…

Então começou. Absorto como estava — comendo o sol e o solo na pera, o suor, o trabalho, o esforço e dedicação, o cuidado e o cultivo na pera, famílias, escolas, transportes, empregos, sonhos, esperanças na pera — levei um susto.

— Nas férias de final de ano, quando era verão aqui no Brasil, nós vínhamos visitar a minha avó – quando começou a falar, ele não olhava para mim, mas através da janela — A minha mãe é brasileira. Minha avó morava aqui em São Paulo, mas no verão a cidade ficava quente demais para ela, que ia para a fazenda no interior, numa região de montanhas… Eu li um parágrafo daquele livro na cozinha, e lembrei-me da minha avó. Ela sempre dizia alguma coisa assim como “ninguém nasce numa família que não seja a sua ou país que não seja o seu” – ele sorriu, para dentro e ainda de perfil – Acho que ela insinuava que minha mãe devia voltar a viver no Brasil. Mas a mesma frase servia ao contrário; meu irmão e eu também a ouvimos muitas vezes, e como nascemos na França, às vezes conversávamos sobre como é que seria vir viver aqui, caso isso acontecesse – ele me encarou, os olhos verdes parecendo ter absorvido a umidade lá fora, tornados mais líquidos, mareados, ele estava emocionado – Bom, de qualquer maneira… Agora, eu estou aqui, e me pergunto para quê… Fazia tempo que não me lembrava dessa frase da minha avó, nem pensava nela assim tão forte…

Ele fez uma pausa longa, e por um momento eu imaginei que o compartilhar dele teria sido aquilo – a dúvida que o ocupava naquele momento. Mas havia mais.

— Ela era maravilhosa, uma personagem. A grande dama incontestável. Estudou num internato onde aprendeu Francês, e fez de tudo para que o pai dela, de quem herdou a fazenda onde passávamos as férias, a mandasse para a França. Na época era uma extravagância, e uma modernidade, uma moça viajar desacompanhada dos pais, pois era assim que ela queria ir, e tanto mais para o exterior. Ela foi com alguma tia idosa, de navio, uma viagem que gostava de contar e recontar, e que eu adorava ouvir. Fazia da tripulação e dos outros passageiros seres míticos, e cada evento de que participou a bordo soava como lenda. A maior viagem da vida dela, e a única, a grande aventura – ele silenciou, inclinando a cabeça de lado, talvez repassando alguns dos episódios ouvidos, e eu esperei que escolhesse um, enquanto o admirava – Quando voltou, tinha prometido a si mesma que, se um dia tivesse filhos, iria manda-los estudar na França. Teve duas filhas, e cumpriu com o prometido. O problema, claro, é que prometera a si mesma, muito antes das filhas nascerem, e portanto sem pedir opinião a elas. Minha tia, a irmã mais velha da minha mãe, foi a contragosto, por ser obediente, e voltou correndo. Chorava de saudades, telefonava ou enviava telegramas todos os dias, estranhou tudo. Minha mãe… a excêntrica, a desobediente… foi correndo e não voltou nunca. Renovava pretextos para estender a estadia, até que conheceu meu pai, e casou-se. Minha avó não esperava por isso. Acho que ela tinha planos para a filha, a filha afrancesada, de exibi-la para a sociedade paulistana como sua criação e conquista, de valorosa viúva, vaidosa que era… Pelo menos é o que sugere a minha mãe… – ele suspirou, e baixou o olhar.

– Mas não é nada disso… É o que eu li, junto com o que você disse depois… Quando você me disse para beber nuvem – e encarou-me novamente, pedindo licença, checando o meu interesse e atenção – Lembrei-me de uma cena da minha infância… Na fazenda… Alvorada. Foi uma fazenda famosa, grande produtora de café. Depois quebrou e quase teve de ser vendida a “uns turcos”, como dizia a minha avó. Ela ficou viúva jovem, mas nunca mais se casou. Tinha dinheiro, por parte do pai e do marido, e inteligência suficientes para decidir a própria vida sozinha. Tinha punho de ferro, sem deixar de ser doce, e controlava tudo, sem dar a impressão que mandava e que tudo saia às suas ordens; mesmo assim, quase perdeu a fazenda… Mas o que eu quero contar… Compartilhar. Junto à casa, nos fundos, perto da cozinha, havia uma jabuticabeira… era o meu lugar de estar, na fazenda. Quando eu era bem pequenininho, colocavam lá uma piscininha de plástico, verde, sob a jabuticabeira, onde podiam observar as crianças menores desde a cozinha, desde o alpendre. É uma das minha primeiras memórias… Dentro dessa piscininha… eu ficava sentado e olhando fascinado o brilho da água nas ondinhas que a brisa formava, eu me arrepiava… As imagens dançando sem cessar, com vida própria, ao meu redor, batendo contra o meu peito, meus braços imersos naquelas imagens… Lembro que me maravilhava com a mudança de intensidade daquele brilho, que se alternava com poças de sombra, ou às vezes me ofuscava, e eu fechava os olhos. Um dia, devia ter dois ou no máximo três anos de idade, aconteceu de todas as coisas finalmente se ligarem… Foi um vento que soprou… E percebi que era o vento que me fazia ficar com frio, arrepiando a minha pele… ainda não tinha percebido isso, antes… e mais… Percebi o vento agitar os galhos da jabuticabeira acima de mim, e vi como isso alterava a intensidade do brilho sobre a água… Como posso explicar? Descobri que o que eu estava vendo, fascinado, o brilho na água, e a alternância com as sombras, era causado pela copa da árvore acima… e mais longe… Naquele momento descobri o sol… E como ele criava as sombras, como ele fazia as coisas brilharem… Não dá para dizer o que foi, para mim… A descoberta da origem das sombras, descobrir que elas partiam do sol… Olhava para baixo, para cima, de novo para baixo e para cima, para a água, para a luz, para a sombra, para o brilho, unindo tudo pela primeira vez… Uni, a luz e a sombra. Lembro-me de, no mesmo instante, também sentir o sol sobre a minha pele… o vento me esfriava e arrepiava, agitava a água e as sombras e descortinava o sol, que me aquecia, e brilhava com mais intensidade e me ofuscava… Eu estava sozinho, não havia nenhuma outra criança nem nenhum adulto por perto, ou talvez sim, à distância me observando, ou não… mas não me lembro… Lembro-me de estar sozinho, dentro da água, tocado pelo vento e pelo sol, descobrindo a causa para os brilhos e as sombras, para o calor e o frio, que queimava ou arrepiava a minha pele. É uma sensação inexplicável, mas eu senti o sol muito próximo… Foi um sentimento de universo… Eu senti o sol fazendo parte da minha vida, dentro dos meus olhos, dentro da minha cabeça… O sol, boiando lá em cima, e boiando na superfície da minha piscininha de plástico, e adentrando pelos meus olhos… Dentro de mim. O sol, então, ainda não era um astro, não estava no centro do nosso sistema, não estava na distância… Nada. Estava dentro de mim. Naquele momento ele me parecia um mágico do cotidiano, criando sombras, criando brilhos, criando calor e frio, criando toda a alternância, o espetáculo. Um pai bom e presente, que sempre brincava comigo e que, incansável, me acariciava, me envolvia, me esquentava. Foi lindo, aquele sentimento… Ao sentir-me protegido e querido pelo sol, olhava toda a paisagem ao meu redor, por todos os lados, para o alto e para baixo, e o mundo parecia-me um lugar seguro, acolhedor, com o sol brilhando por toda a parte…

Ele fez outra pausa, e de novo consultou a minha atenção. Devo ter parecido um bobo, pois estava de verdade embevecido, com aquilo que me contava e como o contava, sentindo os pelos eriçados por debaixo das mangas da camiseta, e ele sorriu, agradecido por minha dedicação.

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— Não sei porque estou te contando… É a primeira vez na vida que falo sobre isso em Português, e mesmo em Francês… Foi o momento mais intenso que tive até hoje. Sob a jabuticabeira da Alvorada. Mas naquele dia não havia nuvens, pelo menos eu não me lembro… As nuvens vieram uns poucos anos mais tarde, talvez eu tivesse cinco, ou seis… é isso o que eu quero con-… compartilhar. Sentava-me no colo do meu irmão, que era dez anos mais velho do que eu, já um rapagão. Eu o adorava. Ele nunca brigava comigo. E eu era mimado, muito estragado… Naquele dia, estava no colo dele porque iam cortar o meu cabelo… Era minha avó quem ia cortar meu cabelo… Eu costumava fazer um bordel por conta disso… Chorava como se doesse, e cada vez que via um cacho cair eu me sentia mutilado, ofendido na minha dignidade – ele riu, e naquele instante surpreendeu meu olhar terno, admirado e talvez um pouco sequioso, passeando por seus lindos cachos loiros – Já não choro mais, mas ainda prefiro mantê-los compridos… – sorriu, amplamente; naquele instante senti que ele me presenteou com um sorriso — Então, minha avó ia cortar meu cabelo. Era uma operação de guerra. A cada ano, colocavam uma cadeira sob a jabuticabeira, e eu ficava no colo de alguém, de preferência o meu irmão, que até deixava de ir cavalgar ou qualquer outra coisa que tinha de fazer, para ficar comigo… Ele me abraçava, me beijava, fazia cócegas em mim, me acariciava e massageava, contava histórias… na verdade, era um dos momentos que eu mais aguardava das nossas férias, o dia de cortar o meu cabelo… Se por um lado eu não gostava, era também então que eu recebia todo o carinho e atenção das duas pessoas mais importantes para mim, as duas que eu amava sem cessar, minha avó e meu irmão… Mas desta vez, eu estava um pouco resfriado, ou tinha tido febre ou disenteria… Estava chatinho, cansado, e um pouco mais triste que de costume por perceber que um dos melhores momentos das minhas férias não seria assim tão bom, comigo naquele estado. Lembro de meu irmão aspirando o meu cabelo e dizendo que adorava cheirinho de neném, que era uma pena que eu ia crescer… Fica para sempre o meu neném, fica… Ele tentava me animar, fazer-me rir, e eu tentei sorrir para agrada-lo… E quando dei esse sorriso fraco, uma abelha me picou o lábio. Eu não a percebera pousar. Só senti a picada, dei um grito e comecei a chorar. Foi um pandemônio. O netinho preferido picado por uma abelha! Meu neném, com a boquinha inchando – ele ria de si mesmo, e animava-se, falando mais rápido, misturando algumas palavras em Francês – Mas eu chorava muito, mais de susto do que de dor… e começavam a cogitar de levar-me até o hospital… E se eu fosse alérgico… Tinha algum caso de alergia na família… Não na nossa família, dizia minha avó, mas na outra, e ela queria dizer a do meu pai, como saber? Essa gente européia tem sangue velho e gasto, por isso tem tanta doença… Morria-se de picada de abelha, não é verdade? Imagina, abelha não é cobra! Nem escorpião… Mas se tiver alergia, morre sim… Comecei a ficar assustado com todo aquele falatório ao meu redor, embora não entendesse a maior parte do que diziam. Devo estar inventando, já que pouco entendia Português… Um médico, um médico… Isso eu entendi, e hospital também. Chamem o doutor Marcos, ordenou a minha avó, conversem com ele pelo telefone, e se ele não estiver, o doutor Guilherme… E nesse meio tempo eu já havia passado do colo do meu irmão para o colo da minha avó, mas continuava me esguelando, com a dedicação de um virtuose… Então alguém trouxe um copo de água com mel, porque a Quininha tinha dito que o mel ia neutralizar a picada da abelha, mas eu não queria beber porque não gostava de mel, muito menos agora que tinha sido picado por uma abelha…

Uma breve pausa, e meu amigo olhou-me intensamente. Percebi que escurecia, mas mesmo na penumbra os olhos dele reluziam.

— E nuvem? Você quer beber nuvem? Foi assim que a minha avó me perguntou, com o copo de água e mel na mão. Você já bebeu nuvem, antes? Meu choro desesperado cessou de imediato, e a glória e lenda da minha avó só fizeram crescer. Você vai beber nuvem, agora… Debruçamo-nos dentro do copo, onde de fato flutuavam nuvens… Olhamos os dois juntos para cima, para o céu, em busca das nuvens verdadeiras, e depois de novo dentro do copo, onde boiava o reflexo das nuvens… Era de novo a revelação de um universo reunido que eu já tinha tido sob aquela mesma árvore, de novo com água, agora confirmada, compartilhada e ampliada pela minha avó. Ela contou-me que a água era filha das nuvens, que as gotinhas de chuva eram todas filhinhas das nuvens, e eram também a própria nuvem, só que mais pesadas, e por isso elas escorriam. E era por isso que, quando bebêssemos água, estaríamos bebendo as nuvens… Já pensou, um monte de nuvens na sua barriguinha… Ela viu que eu adorei a idéia, e então me agarrou com força, dizendo… Tenho que segurar esse menininho, senão ele vai querer sair flutuando agora mesmo… Depois minha avó moveu o copo pelo ar, como se caçasse nuvens, como se as colhesse dentro do copo… E assim saímos passeando pelo jardim, rodopiando com o copo, colhendo nuvens, colhendo sol, caminhando com muito cuidado, pois todo o tempo olhávamos para a paisagem dentro do copo… Era divertido, e era maravilhoso… Era mágico. Mesmo assim, eu não quis beber a água, por causa do mel… Então minha avó me contou que o mel era uma coisa maravilhosa… As flores, que eu tanto adorava pelas cores… Elas eram filhas das nuvens, pois bebiam as gotas de chuva… E o mel era filho das flores, e filho das cores… O mel tinha as flores por mãe, e as abelhinhas por pai… As cores por mãe, e o vôo por pai… As abelhinhas trabalhavam o dia inteiro, cantando, visitando cada mãe e…

Assustamo-nos com o toque da campainha, encerrando nossa meditação do chá. No escuro, apenas as nuvens esbranquiçadas pela luz fria que subia da cidade ainda nos iluminavam. Sem nos alcançar, raios de laser verde batiam e giravam contra o céu.

Leia o Trecho VI – Where do you start?

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