Trecho XI – No surprises, please

outubro 5, 2009

O transbordamento ou a vaporização das águas depende da estação.
Se ela é redonda ou quadrada, depende do recipiente.
Fluente na primavera, sólida no inverno,
sua imensidade não pode ser medida,
sua origem não pode ser encontrada.

Thich Nhat Hanh

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Foi o copo em minhas mãos, talvez. Um copo comprado na viagem a Bonaire, Caribe holandês, em companhia de minha família, uns vinte anos atrás. Um copo de cerâmica japonesa, comprada no Caribe holandês em uma loja de hindus, agora contendo o chá cultivado e colhido no Vietnã, embalado e despachado de Taiwan, o delicioso oolong que eu bebia onze andares dentro do céu… Foi como se tudo fosse novo e se tornasse inédito. O copo pareceu-me um milagre. O trabalho que continha, o estudo que manifestava, o conhecimento de gerações de artesãos que representava… Aquela cerâmica continha pessoas e seus esforços, as famílias e suas histórias, a sucessão de gerações e a transmissão da memória… Brasil, Holanda, Japão, Índia, Vietnã, Taiwan… Desde os primeiros artefatos de barro do homem até aquele copo, eu percebia segurar em minha mão uma clara linha de sucessivos milagres e transportes, de aprendizado e habilidades, de destreza e diligência, de inteligência e determinação – havia tanta história pregressa àquele copo, tanta memória contida naquela cerâmica, agora em minhas mãos… E além de tantas mãos em minhas mãos havia o solo naquele copo, e o Sol naquele copo, e a chuva, e as nuvens e… Levantei o olhar dele e de novo aconteceu-me de olhar as paredes do meu apartamento como a um milagre. Por mais que eu tivesse estudado engenharia, arquitetura, cálculos, resistência de materiais, leis da física – mesmo assim, pareceu-me um milagre estar vivendo ali, pendurado a tantos metros do chão, em meio ao céu… Vivendo no céu, como dizia Theo, o deus adolescente… E não apenas me lembrava do que ele havia dito, compartilhando sua própria vivência em meu apartamento, que eu mesmo já tivera, outrora — à qual agora retornava…

Do corredor onde me encontrava olhei em direção à sala, através das janelas imensas, e vi claramente que estava dentro do céu. Flutuando em nuvens de concreto, muitos metros acima do solo. Lembrei-me de uma ocasião na minha infância, feriado passado em Campos do Jordão. Caminhava com minha família pelo Horto Florestal, quando a neblina descendeu sobre a paisagem. Meus pais ficaram preocupados por não podermos enxergar mais do que uns poucos passos à nossa frente, e quiseram retornar, pois rapidamente esfriara e a umidade do ar passava a se condensar e tornara-se uma envolvente garoa minúscula. Não tem mais nada pra ver aqui, disseram, indicando a paisagem sumida na neblina… Mas para mim era… como um milagre realizado! Senti como se estivesse flutuando! O céu descendera sobre a terra! Eu estava dentro das nuvens…. E então percebi… Foi uma sensação física muito forte, e especialmente para uma criança de cinco ou seis anos… Dei-me conta de que somente as solas dos pés tocavam a terra. Apenas aquela partezinha de mim, na realidade, tocava a terra – o resto, a maioria do meu corpo, estava no ar… E com a nuvens assim baixas, de repente percebi que eu vivia no céu… Claro! Não havia um céu começando lá em cima. O céu, feito de ar, começava logo acima do solo, e era dentro dele que eu me mexia, caminhava – minimamente apoiado sobre a terra, ainda que firmemente apoiado sobre a terra, porém vivia, caminhava e me movimentava dentro do céu… O céu não ficava longe, não ficava lá no alto, lá no céu… O céu era aqui mesmo, começava e estava ao meu redor – eu, todo o tempo, todo o meu corpo, dentro do céu… Não pude dividir aquele momento com meus pais, pois na verdade não conseguiria expressa-lo com as palavras que sabia então – e nem com as que sei agora, ainda. Lembro-me de abrir os braços e movimenta-los, tranquilamente batendo-os no ar, como se assim eu pudesse voar… Lembro de ficar bem na ponta dos pés, e pensar – eu estou no céu! E assim fui ficando para trás, atrasando a procissão que pressurosa pretendia voltar à entrada do parque, e assim meus pais foram ficando aborrecidos comigo, e assim fui perdendo o céu… Na verdade, eles tinham receio de que meu irmãozinho, dormindo no carrinho que eles empurravam, se resfriasse com a súbita mudança de temperatura e umidade, e talvez também eu… Mal sabiam, e ainda não sabem, que eu estava no céu, que eu estou no céu.

A partir daquele dia, pude dispor de uma liberdade secreta e irrestrita em meus movimentos. Mesmo em lugares estreitos, em lugares lotados, movia-me em meio à multidão como se me movimentasse pelo céu. Passei a conviver com a secreta convicção de habitar o céu, de ser uma criatura dos ares. Depois iria aprender esse conceito de céu como paraíso, nas aulas de catecismo, e compreendi que não dividia com ninguém aquela noção de que o céu é aqui mesmo, o paraíso é aqui, e não em algum outro lugar, distante, inalcançável, possível só depois da morte, se é que… Depois fui aprender que o ar era o elemento do espírito, o Éter, e tinha a sensação já instalada de que vivia no espírito, de que todas a coisas se alçavam, mantinham-se, almejavam, empinavam-se, saltavam, erigiam, pulavam, voavam, habitavam dentro do Espírito – e de volta ao meu apartamento, o menino que havia crescido amando os dias nublados e a neblina sentia-se finalmente habitando os céus… Pensei com gratidão em todas as pessoas que haviam construído aquele refúgio aéreo para mim, olhando as paredes do lar ao meu redor…

Toquei a parede mais próxima de mim com lágrimas nos olhos, sentindo nela a presença perpétua dos pedreiros, dos operários, dos engenheiros, dos calculistas, dos pintores e dos marceneiros, dos encanadores, e dos seus mestres, dos médicos, dos seus pais, das suas mães, dos irmãos e irmãs, dos agricultores – de todas as pessoas que haviam participado da construção daquela milagrosa torre erguendo-se firme dentro do céu, na qual presunçosamente eu agora habitava… Como não ajoelhar-me todos os dias perante um altar para estas pessoas que possibilitavam tornar bem real e palpável o meu viver no céu? Como não agradecer todos os dias a gerações de construtores, mas também de agricultores, artesãos, professores, que tornavam possível minha existência nesse momento, aqui e agora, pendurado no céu — em minha mão um copo de cerâmica japonesa comprado no Caribe holandês contendo o chá cultivado e colhido no Vietnã e despachado de Taiwan…

Foi nesse estado que Donita encontrou-me, retornada das compras.

— O senhor quer almoçar agora? – perguntou-me, quando encarei-a com os olhos e faces úmidos, e imagino o olhar transtornado que coloquei sobre ela, pois a enxerguei como um bodhisattva que há anos vinha cuidando do meu bem estar, e com profunda gratidão olhei para ela, que retornou um olhar um pouco assustado e desconfiado que eu bem conhecia, que às vezes era acompanhado de uma frase famosa – O senhor hoje tá especial – e com isso, dito de maneira carinhosa, ela queria dizer que eu estava diferente do normal, o que quer que meu estado normal fosse, ou dito de outra maneira, significava simplesmente que eu era esquisito. Ela nunca ultrapassara uma certa barreira de respeito comigo, apesar das décadas de convivência, e eu tinha a impressão de que ela acreditava que de vez em quando eu usava drogas – se nem mesmo maconha eu havia experimentado em toda a minha vida, nem uma única vez… Como poderia, alguém que percebeu viver no céu desde a infância, precisar de qualquer outra coisa para alçar vôo? Meu maior esforço, se é que eu o fazia, era pousar à terra.

— O senhor quer? – preferi prolongar o jejum provisório e cuidar da emoção que me dominava, deixando Donita terminar a limpeza do apartamento, que eu interrompera enviando-a ao mercado. Decidi levar a chaleira para o escritório e lá tentar acalmar-me. Percorrendo o corredor percebi que, vivendo assim miraculosamente empilhado, pisava na cabeça de dezenas de pessoas, sem no entanto pisoteá-las, e compartilhando com elas o céu, embora talvez nenhuma disso se apercebesse — a não ser Theo, em algum lugar acima de mim. Mas eu me encontrava tomado ou tocado, “especial” – e todas as coisas haviam se transfigurado. Das coisas mais simples, as quais usufruía sem muito notar, como os tacos de cumaru sob meus pés, ou a perobinha rosa dos rodapés, até as coisas de grife às quais me orgulhava de possuir, como a chaise longue do Niemeyer – todas pareciam recortar-se no ar, os contornos precisos e distintos, todas pareciam iluminar-se, preciosas, todas perfeitamente conscienciosas, todas incrivelmente orgulhosas, todas demonstrando o milagre do engenho humano, da transmissão da memória, da manifestação da vida… A princípio, pensei escutar a playlist presenteada por Theo para pacificar-me – mas o fato de que aquele pequenino pen drive em formato de pingüim friorento, que me fazia recordar e sorrir, pudesse conter música pareceu-me subitamente fabuloso, e fiquei a contemplá-lo pousado na palma de minha mão – até ouvir Donita chamar-me com um grito, premente e atordoado.

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Talvez o chá contivesse alguma substância alucinógena que só depois de muitas doses se manifestasse no organismo – e quantos pacotes eu já havia bebido, nos últimos anos? Dezenas de bules, centenas de copos, xícaras, canecas – e agora eu estava a ver água jorrando da porta do lavabo escorrendo rápida e caudalosa numa corredeira pelo corredor, batendo contra a parede e refluindo, escoando para a sala.

— A descarga disparou! – gritou Donita, enquanto afobava-se sem saber bem o que fazer. Panos não iriam resolver, nem mesmo um balde. Observei o vórtice de água brotando do vaso sanitário, e pensei com ironia que, com um só fortuito golpe, estava finalmente desperdiçando toda a água que tão conscienciosamente procurara economizar ao longo dos meus anos de cover de ativista ecológico urbano… – Onde é o registro? – gritou Donita, com os pés mergulhados em água, no lavabo que se enchia rapidamente por ser pequeno e diante de tal vazão de água, ainda que a porta estivesse aberta.

Era tanta a distância do céu das coisas iluminadas em que me encontrara para agora aquela privada vertendo água meu coração aos pulos demorei quase um minuto para tomar alguma providência primeiro pensei em ligar para o zelador mas até ele chegar o desastre seria tão maior comecei a suar a sala de estar começando a inundar Donita erguendo os móveis de pés molhados que colocava em cima dos outros que tentava empurrar e uma confusão mental e agitação até que no meio disso tudo eu me lembrasse de me voltar à respiração acalmando-a e acalmando-me e não sei se fechei a porta para deixar de ver Donita apavorada ou o corredor como um regato ou os meus móveis assinados mergulhados como palafitas ou se foi para de fato estancar a corrida da água para fora do lavabo que então começou a encher e escalar as paredes e eu num flash lembrei-me de um vídeo do Radiohead e enquanto ria comecei a rodar as torneiras que na parede acima havia imaginando que uma delas interromperia o fluxo o que de fato aconteceu parou Donita eu gritei e esperei que o ralo desse vazão a quase toda a água que tinha tornado o lavabo uma piscininha infantil lembrando-me da verde instalada sob a jabuticabeira que Theo havia compartilhado comigo outro dia e da azul com golfinhos armada na frente da casa de praia de Verena para o bebezinho esbaldar-se de espirrar tanta água ao redor que às vezes Gustavo se afogava em sua própria agitação e interrompia surpreso piscando os olhinhos cuspindo a água para de novo recomeçar com as palmadas e as ondas para só então abrir a porta e sair e então foi tirar todos os baldes e bacias dos armários e como todos os panos de chão não bastaram mesmo os metros de linho para telas que eu nunca havia pintado e alguns cobertores mais velhos enquanto o coração acalmava mas a mente ainda dava piruetas de pés molhados encaminhei-me para o escritório pensando que outrora comprara quinhentos metros quadrados de presunçoso conforto que de um momento para outro podiam transformar-se em quinhentos metros quadrados de problemas e percalços quando a atendente do seguro residência perguntou-me se de fato era uma situação de emergência eu ri:

— Imagina que o corredor do seu apartamento virou um rio, indo desaguar na sua sala de estar, que rapidamente se enche como um lago… Consegue enxergar uma almofada de chão movendo-se como uma jangada, carregada pela enxurrada? Em desespero você se tranca dentro do lavabo, junto da privada que está vazando, e vê a água escalando acima dos seus calcanhares – ri de novo – Você sabe nadar, Valeria? – e a moça, que não sabia nadar, assegurou-me então que um profissional qualificado estaria na minha residência em até quatro horas – Diga para ele trazer uma bóia, ou quem sabe um escafandro, que até lá o meu apartamento já terá virado um mar, e talvez a água esteja escorrendo pelo parapeito abaixo numa fenomenal cascata que vai parar a avenida… então para entrar no prédio ele vai precisar trazer um guarda-chuva também… Você conhece o rapaz? Ele sabe nadar?

Ainda sem fôlego e suado, fiquei olhando o telefone sobre a mesa, tentando retomar o fio de percepção que fizera dele um ser iluminado e o milagre que me iluminava de volta, há menos de meia hora atrás… Foi quando ele tocou, como se acordasse e me respondesse, indagando:

— O que você tá fazendo?
Fiquei em dúvida.
— Estou sentado em estado de choque diante do telefone e da promessa de que um encanador virá aqui em casa em até quatro horas – eu ri – Sabe a música No Surprises do Radiohead… Such a pretty house… and such a pretty garden… No alarms and no surprises… no alarms and no surprises… Please – e como para a geração de Theo música significasse também imagem, mencionei o vídeo, que ele confirmou – Aquele em que o Thom Yorke continua cantando enquanto submerge? Cool!– era uma gíria que sempre me fazia sorrir, especialmente com a pronúncia francesa; e depois da breve menção da devida trilha sonora e visual, contei a ele a situação no meu apartamento.
— Você tá falando sério?
— Digamos que por não sei qual razão eu não estou conseguindo falar sério sobre uma situação que foi séria ou que talvez seja séria ainda mas que já passou o pior já passou ou já está feito… Sou grato a meus pais por terem me colocado na natação logo aos cinco anos de idade….
— Você precisa de ajuda?
— Você tem algum talento para encanador?
Theo riu.
— Hoje a minha ajudante está aqui em casa, então fica mais fácil… E você, o que está fazendo?
— Eu… – ouvi a voz de Theo espreguiçando-se junto com o corpo que ele alongava, e imaginei-o uma lânguida, vigorosa pantera esgueirando-se para fora da caverna – …estou acordando…

— Achei que você tivesse acordado mais cedo? A que horas você trouxe o pen drive aqui em casa? Obrigado por isso, Theo. E por tudo.
— Obrigado você. É um presente, pode ficar com o pingüim… Quando você saiu eu ainda não estava querendo dormir então gravei as playlists e deixei com a Anita, que estava chegando para trabalhar… – Theo tinha boa memória para nomes, pois na verdade cultivava uma excepcional consideração por cada pessoa que conhecia, e parecia plenamente presente diante de cada uma, de tal forma que não esquecia o rosto nem o nome delas, eu ainda iria notar — Você já escutou?

— Não – eu ri, ouvindo a expectativa adolescente que na voz dele havia, ansioso por compartilhar comigo e saber a minha opinião – Até agora eu só consegui acordar, fazer chá e daí me dei conta de que estou vivendo no céu desde a minha infância, mas então o céu inundou…
— Só um instante, só um instante, por favor – Theo atendeu uma outra chamada, podando minha tendência a fazer drama – Agora eu tenho de ir. Vou passar a tarde com a minha mãe. Amanhã ela vai para a fazenda, com minha tia, e fica lá até o feriado. Então, hoje é a última chance de passar com ela… Você gostaria de assistir um filme comigo, hoje à noite?
— O que eu não gostaria fazer com você, Theo? – pensei mas não disse, e perguntei – O que você gostaria de assistir?
— Prefiro que você escolha.
— Faz tanto tempo que não vou ao cinema… Nem sei o que está passando. A que horas você quer ir? – comecei a abrir a internet no computador à minha frente.
— Não pensei em cinema… Hoje prometi sair com o Joshua e os amigos dele. Mas nunca é antes da meia-noite, então podíamos assistir um filme aqui em casa, foi o que pensei… Você tem algum para trazer?

Combinamos que ele me ligaria quando estivesse livre.

— Você vai ficar bem? — perguntou com certa veemência, com uma preocupação e desvelo que eu não compreendi porque, primeiro não pretendia esperar isso dele, para não apanhar-me decepcionado em nossa amizade, e por outro lado ainda não me dera conta da importância que eu passara a ter para Theo, em parte obliterado por minha confusão emocional na qual havia uma grande dose de preconceito, culpa e medo de rejeição, e que bastavam para manter-me a uma prudente distância dele, turvando o nosso relacionamento, e em parte por minha falta de clareza mental no momento, e sempre, alimentando expectativas, desejos, avidez, carência. Respondi um pouco displicentemente a uma pergunta carregada de tão intensa sinceridade, de sincera intenção.
— Eu estou bem, Theo. De verdade – suspirei, e por um instante fiquei em silêncio, voltando-me à minha respiração, ouvindo Theo respirar do outro lado da linha. Meu coração tinha se acalmado, mas minha mente continuava um pouco agitada, embora tivesse tomado todas as providências possíveis. Pensava que devia retornar e ajudar e orientar Donita com as palafitas em que se haviam transformado meu móveis pés palito — E ainda melhor depois de ter falado com você – ouvi-o sorrir, como eu pretendia – Como te disse, eu sei nadar – lembrei-me que ainda outro dia estivera nadando no Mediterrâneo, junto de Theo, e que o mais importante era aprender a nadar dentro da minha própria mente, evitando as correntezas, as enxurradas, como a que há pouco acontecera, e que tinha sido um bom teste para a calma que procurava cultivar, diligentemente, para a minha clareza mental, para minha capacidade de recuperação, de centramento. Se em parte estava contrariado por ter me perdido daquele estado maravilhoso imediatamente anterior à inundação, em que todas as coisas pareciam iluminadas, em que eu parecia a tudo olhar e enxergar em câmera lenta de alta definição, podia também observar, com ironia e bom humor, sem desespero, a lição que me tinha sido passada, catapultando-me dum sublime estado para outro bem grosseiro, sem aviso nem escalas. … No alarms and no surprises… Please! E estava satisfeito ao ter me lembrado de, no meio da crise, retornar à minha respiração e invocar clareza, ao invés de continuar agindo atabalhoado.

— O seu prazo de validade está para vencer! – atendi Aquiles, com sua voz tonitruante – A última dose que recebi de você foi há muito tempo! Preciso de outra, urgente! – era sua maneira de convidar-me à sua casa, e assegurei que iria visita-lo no dia seguinte, à tarde – A Agnes me ligou essa manhã, disse que não consegue falar com você faz tempo… Acho que ela ainda liga no seu celular… Ela quer saber se você vai para a fazenda no próximo feriado – era a irmã de Aquiles, e a ambos eu havia herdado do meu primeiro namorado, uma história de amor e desunião familiar que gostaria de contar em outro trecho – E eu quero saber se você vai precisar do meu jipe, para poder prepara-lo…

Para comemorar os setenta anos de idade, Aquiles comprara um off-road luxuoso que ele chamava genericamente de “jipe”. Um erro estratégico, segundo seu médico oftalmologista, já que Aquiles tinha as duas vistas comprometidas, tendo passado por diversas cirurgias seguidas de catarata. Não posso mais sacudir por aí, Aquiles dizia, nem mesmo se eu quiser ir dançar… Ele tinha outro carro e motorista, mas o jipe, que eu desconfiava ter sido comprado de presente para um rapaz que tinha se revelado o mau caráter que todos já sabíamos ser, ficava estacionado e como Aquiles não queria vende-lo, procurava compartilha-lo com os amigos. Tendo me desfeito do meu próprio carro, era sempre a primeira e preferencial opção de Aquiles para desencalhar o seu jipe.

— O que você pretende fazer no feriado, meu querido? Não que eu esteja me convidando, claro! Até porque imagino que você vá me contar sobre outro daqueles horrendos retiros de ficar sentado em silêncio numa almofada durante dez horas por dia… Imagine, eu calado! – Aquiles riu, e eu tive de afastar o telefone do ouvido, enquanto ria da sua risada – Entreter-me ouvindo grilinhos cricrilando e sapinhos coachando, sem poder ler nem um livrinho… Vou ficar em casa ouvindo minha musiquinha! – era assim que ele se referia genericamente à sua exaustiva coleção de óperas e sua épica biblioteca – Só gostaria de saber para antes poder preparar o carro – cuidar dos amigos era uma das ocupações prediletas de Aquiles, tanto mais agora que havia se aposentado da Secretaria de Obras.

Quase não falei, durante aquela ligação. Assim como estava perdendo a visão, sentia que Aquiles perdia também a capacidade de ouvir as pessoas, embora não tivesse de maneira alguma ficado surdo. Observei em mim um pouco de impaciência e aversão, brotando sempre que alguém me perguntava com antecedência dos meus planos. Não era só mais um hábito trazido do mosteiro — como acusava Lissa — onde, apesar de termos um planejamento anual, normalmente não pensávamos muito além do dia seguinte. Esta era uma maneira de viver para mim, parte da minha liberdade intrínseca, cultivada desde a adolescência, para desespero dos meus familiares. Pessoalmente, desgostava-me ter de antecipar os acontecimentos, agendar, planejar – embora, profissionalmente, eu tivesse obedecido a todas estas regras. Mas somente como a um exercício, sem nenhuma convicção. Percebia que, como não acreditava de fato nestas predições futurísticas — e absolutamente não em previsões meteorológicas ou astrológicas –, raramente ficava frustrado, e jamais surpreso, quando as coisas saiam diferente do planejado. Podia compreender que a maioria das pessoas precisasse viver assim, antecipando-se, prevendo, agendando, buscando segurança em relação a um futuro que só e mal podiam imaginar, ou seja, na minha visão tentando agendar e prever e ter segurança em relação somente à própria imaginação – e portanto podia compreender e perdoar a Aquiles o que para mim parecia ser pressa e pressão, mas ainda assim frustrei-o ao não saber dos rumos que pretendia tomar no feriado, que não seria senão dali a cinco dias, o que me parecia muito distante, totalmente imprevisível. Minha viagem pela Índia tinha me exposto à verdade bastante vivenciada de que a morte podia advir a qualquer instante. Eu não podia assegurar que estaria vivo até o próximo feriado, nem até o final do dia, e com a minha prática do mosteiro de não concentrar-me a não ser no momento presente, planificar minha vida pessoal parecia-me um exercício tão abstrato de brincar com a irrealidade que, a não ser fossem planos que demandassem muita logística e novidade, ou se estivesse muito apaixonado e precisasse planejar-me para poder incluir o outro, ou mesmo assim, preferia sempre deixar-me surpreender, e fazer minhas escolhas no momento da escolha de fato, consultando minha vontade e inclinação do momento – e nunca antes disso. Parecia-me uma maneira salutar de viver, mas que contrariava o mainstream das pessoas. E a impressão que dava, como naquele caso de Aquiles e Agnes, era que eu estava à espera de receber todo o escopo possível de convites para só então decidir-me, o que talvez parecesse indelicado e interesseiro – e estava ciente de que talvez fosse assim mesmo.

Às vezes, e só bem recentemente, refletido na atitude de alguns colegas de monastério, e na de muitos reiterados viajantes que encontrara em minhas andanças, percebera ter-me tornado escravo da minha noção de liberdade. Rabisquei, de um jorro :

Peça à Escravidão
que se renda à Liberdade
e ela irá facilmente responder:
Sim.

Peça então à Liberdade
para sujeitar-se à Escravidão.
Ela irá humildemente responder:
Por amor.

Relendo, perguntei-me o que seria essa escravidão, ou tal liberdade – e o que seria, afinal, amor.

Talvez fosse esse amor, o que sentia. Pois de novo as coisas entraram em foco, naquele módulo de alta definição em câmera lenta. Num instante, dava-me conta das nuvens refletidas diferentemente pela superfície do copo de cerâmica e pela chaleira. Podia pensar que aquelas eram as nuvens que passavam lá do outro lado das portas envidraçadas, do lado de fora da minha sacada, e que estivessem dentro do meu apartamento só como um reflexo na superfície polida dos objetos. Vi-as moverem-se sobre o telefone, a bandeja de prata onde repousava a correspondência, a luminária de metal, a moringa de porcelana – cada uma delas refletia a passagem das nuvens à sua maneira… Mas era mais do que isso! Cada uma delas continha e manifestava as nuvens que trazia em si. Cada uma daquelas coisas continha nuvem em si – era mais óbvio de perceber na água do chá e na cerâmica do copo, na porcelana da moringa, mas mesmo no telefone, na bandeja de prata ou no papel das correspondências, havia a chuva nos alimentos de cada pessoa responsável pela existência daqueles objetos, e chuva em todas as gerações anteriores… E as nuvens no telefone continham todas as nuvens de antes, pois uma nuvem agora não poderia existir sem todas as nuvens precedentes… Cada coisa que existia agora continha e continuava as coisas que haviam existido anteriormente… O telefone continha a nuvem, a chaleira era uma continuação da cana-de-açúcar, o papel continha formiga, a bandeja de prata continha o bóia-fria e sua dura rotina, continha até o seu boné… Eram só nomes a diferencia-las entre si, pois todas manifestavam a mesma coisa em combinações diferentes, todas continham tudo o mais, em cada qual combinada a seu próprio modo, eu pensava – ou melhor, eu sentia, naquele estado em que todas as coisas apresentavam-se cuidadosamente a mim, detalhadamente a mim, em sua amplitude, em sua infinitude. Iluminadas, iluminando-me de volta! Cada coisa era infinita, ainda que um dia cessasse de existir, aparentemente finda. ‘Cause you’re free… And you’re alive… You’re free and you’re alive… You’re free – Perry Blake ainda tocava na Rádio Mente e de algum lugar alcançava-me o tii-tii-til-ti-til e uma furadeira procurando perfurar a parede de algum apartamento abaixo e o coração tão próximo em meu peito que no entanto eu não conseguia ouvir naquele momento… Então a nuvem tocou, claramente, o som repercutindo em todos os objetos próximos, o som a um só tempo dentro e fora de mim, a nuvem em mim… Quando trouxe o aparelho na direção do meu rosto, era como se estivesse assistindo a um filme, no qual eu mesmo tomava parte — os dedos tão destros, o braço no gesto tão vasto, tudo tão calmo, o plástico um pouco gorduroso e frio ao toque, o fio estendendo-se enquanto meu braço encolhia e aproximava-se, a pressão contra a orelha e o milagre de uma voz brotando de dentro do aparelho direto para dentro da minha mente… Tudo tão prosaico e tão complexo, tão misterioso, tão… milagroso! Era como voltar a ser um bebê, redescobrindo e re-experimentando cada coisa, cada evento e objeto, mas já sabendo seus nomes e suas funções, sem que isso fosse muito, ou mesmo bastante.

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— O monge foi para a balada, ontem à noite? – Lissa ironizou – Donita contou que você deixou um bilhete dizendo ter ido dormir muito tarde… Acontece que te liguei a noite inteira e você não atendeu… Ou você estava muito ocupado para atender?

Passei a noite com Theo, era a verdade e pensei em espicaçar, mas minha prática não permitiu dize-lo, então fui direto e informei – Fui conhecer o apartamento do Theo, e ficamos conversando até o Sol nascer.
— Conversando!?
— Exatamente como nós estamos fazendo, Lissa. Falando, um com o outro. Só que ao vivo, e a cores – lembrei-me da manta colorida que eu vestira, e das toucas tibetanas com trancinhas; lembrei-me também do abdômen de Theo – Você não estava com o Basil ontem? – e súbito lembrei-me de que ele iria para Londres, e antes que ela me contrariasse perguntei educadamente – Ele já deu notícias? Chegou bem de viagem? – foi uma maneira de despistar, reconheço, deixando de lado minha noite e madrugada e manhã com Theo. Tomei outro gole do chá, ouvindo com cuidado tudo o que Lissa disse-me sobre o namorado, pois era verdade que eu bem pouco e raramente perguntava dele. Mas também ela mudou de assunto.

— Achei que pudéssemos colocar nossa conversa em dia, ontem, já que ultimamente você esteve meio… ausente – sem Basil, Lissa tinha muito tempo livre e ficava carente, e assim como com o jipe de Aquiles, eu era a primeira opção, o que muito me lisonjeava – E hoje, você vai encontrar o menino de novo?
— Na verdade… – tive de rir – eu vou. Nós vamos ver um filme juntos – e apressei-me a esclarecer, antes que ela pensasse que Theo iria acabar com meu jejum de cinema – Vamos assistir um dvd na casa dele, hoje à noite. Mas agora estou tranqüilo, e vou ficar em casa, se você quiser vir me fazer uma visita… Tenho de ficar aqui esperando o encanador. Sabe, o Jacobsen e o Tenreiro quase se afogaram hoje – e contei a ela o acontecido.

— Por que você não ligou para o Seu Norberto? Ele mandaria alguém imediatamente. Você quer que eu ligue para ele, agora?
— Obrigado! Ocorreu-me que eu tenho esse seguro residência há anos, e nunca o usei.
— Então você quer que eu te faça companhia enquanto você espera pelo encanador?
— Não. Posso perfeitamente espera-lo sozinho. Só que agora eu não posso sair de casa para encontrar você, então por isso te convido para vir aqui. Qual o problema, Lissa? – e eu acreditava saber a resposta, só queria ouvir dela mesma.
— Acho estranha essa amizade de vocês dois, só isso.
— É a diferença de idade ou o quê?
— Tudo, eu acho. Vocês não combinam. Sinceramente, eu não consigo imaginar vocês varando uma madrugada até o amanhecer, conversando.
— E transando, você consegue nos imaginar?
— Menos ainda, nessa sua atual fase celibatária…

— Uma revista velha vai parar no lixo – reciclável, de preferência, para que tenha ainda uma outra chance — só quando ninguém mais quiser olhar para ela… Você está querendo me ofender, Lissa?
— Não estou dizendo isso. Vejo muitas razões para esse menino estar no seu pé… Sempre vi, desde o início. Só não entendo as suas. Além do fato de ele ser muito lindo, nisso eu concordo, mas passar tanto tempo com ele…

— O jazz podia ser uma das razões. Tenho poucos amigos que amem jazz. O Theo colocou uma das músicas mais lindas que jamais ouvi, de um trio que eu não conhecia, para tocar no nascente que assistimos juntos. Tenho uns outros poucos com quem posso dividir meu amor pela literatura – recordei-me de Verena, a quem a imagem de Gustavo vinha agora imediatamente associada — E um só que cita Platão, o Aquiles.
— E o seu menino já leu Platão?
— O nome do menino é Theo, como você descobriu para mim – não deveria incomodar-me Lissa referir-se a ele como menino, pois eu mesmo pensara nele assim, de início, até para mantê-lo a uma prudente distância – E ele já leu Platão… Como eu, na faculdade, lembra? Oh my beauty boy, reading Plato so divine!– era a frase inicial de um conto do Scott Fitzgerald, lembrei-me mesmo do dia em que o havia lido, num trem pela Suíça, quando um rapaz muito bonito, cabelos negros cacheados e olhos azuis, havia subido numa pequenina estação e sentara não distante de mim, lendo Platão. Contei a Lissa sobre as pilhas de livros que no apartamento de Theo havia, espalhadas por toda parte – Mas o fato é que eu não tenho nenhum amigo com quem possa conversar sobre a prática. Ou melhor, nenhum outro amigo que também pratique. Nenhum. E isso é importante para mim. A beleza e a cultura dele importam-me menos do que o fato de compartilharmos o mesmo mestre, e uma certa sensibilidade e sinceridade e disposição para a prática. Ele me confirma, me estimula, me desafia – suspirei.

— Não vou acreditar que é por falta de opção que você está passando tanto tempo com ele! E se aparecesse uma praticante, como você diz, dedicadíssima, ainda mais do que o Theo, mas que fosse zarolha, tivesse mau hálito e uma verruga no nariz… — Lissa riu – E se o Theo fosse banguela?

Pensei em contar de um vídeo que assistira recentemente, em que o Chet Baker cantava banguela, e mesmo assim eu permanecia apaixonado por ele, mas ao invés — Ok, você venceu — eu ri também, e emendei — Toda nova amizade… – procurei a palavra, e a que encontrei era a mais corrente há dias na minha vida — …é um milagre. Sabe aquela magia, quando nasce uma amizade… Quando se quer saber tudo sobre a pessoa, e ao contrário de alguma paixão desde o início cheia de possessividade e expectativas, no começo duma amizade nada nos ofende, nada se rejeita, tudo se aceita e acolhe… Tem sido assim.

— Que bom! Fico feliz – soava sincera – Reconheço que estou com ciúmes. Mas fico feliz. Reconheço que jazz, Platão e zen é uma combinação difícil de se repetir… E tudo isso exatamente no mesmo CEP que você… Concordo, é um milagre! – ela riu de novo — Será que o Theo já comprometeu toda a sua agenda de amanhã? – combinávamos nosso almoço, quando o bodhisattva do meu bem estar apareceu à porta do escritório, perfumada e maquiada, pronta para ir embora, tendo enxugado todo o chão e decidido deixar alguns móveis fora de lugar, longe da área molhada, e outros empilhados, de pernas para o ar.

— Uma das almofadas que estava no chão não presta mais eu acho mas coloquei ela pra secar na varanda amanhã o senhor olha ela se não chover hoje – e ouvindo Donita dar-me notícias sobre as águas, escutei-a dar notícias das nuvens, e todas as coisas pareceram-me nuvens, conter nuvens ou continuar as nuvens, as palavras de Donita flutuando para fora de sua boca como nuvens, as nuvens que haviam chovido na horta comunitária de que ela participava, as nuvens que a alimentavam e à sua família e a dos operários que haviam erguido a torre de nuvens de concreto que permitia o nosso encontro e o nosso diálogo… E embora nem todas as coisas fossem nuvens de fato, e nem mesmo de fato as nuvens fossem nuvens, embora as chamássemos e as considerássemos nuvens, podia brincar de encontrar nuvens em todas as coisas, e todas as coisas e eventos e pessoas e eu mesmo eram tão passageiras quanto as nuvens, fluidas, móveis, livres, misturadas, intersendo. ‘Cause you’re free… And you’re alive… Imagino o olhar que botei sobre Donita, que declarou:

— Hoje o senhor tá mesmo especial! – e é melhor eu ir embora quanto antes, ela não disse mas demonstrou.

Caminhei pelo apartamento atrás de Donita como se cruzasse o céu no rastro de um bodhisattva. E então percebi que todas as coisas podiam ser tanto nuvens quanto bodhisattvas… Podia pensar nelas como quisesse, chama-las como quisesse, inclusive pelos nomes convencionais… Todas suportando a nossa existência naquele momento, minha e de Donita e desta escrita e deste computador e desta estória e desta leitura e deste leitor… Todas as coisas contribuindo para que a vida exista, neste momento. O corredor parecia-me tão gracioso e amoroso, gentilmente conduzindo-nos quase com certeza à porta de madeira maciça que generosa nos aguardava ali, se pudéssemos continuar a viver até lá, passo após passo, a paz a cada passo… Concreto, ferro, matemática, madeira, vidro, arroz, feijão, taco a taco, metro a metro, todas as coisas eram elos numa abundante cadeia de generosidade que podíamos empregar para… para quê, afinal?

Donita olhou-me uma última vez, de soslaio e surpresa, não porque eu a tivesse abraçado e beijado à saída como fazia todas as vezes, mas porque pleno de gratidão eu abraçava o bodhisattva que ela era, e percebia-nos cercados de bodhisattvas por todos os lados, generosamente oferecendo-nos suporte para a vida que se manifestava naquele momento. Abracei-a em meio ao céu, flutuando sobre a cidade na plataforma de concreto que nos apoiava, e vi-a partir como a uma nuvem… ‘Cause you’re free… And you’re alive… You’re free and you’re alive… You’re free… — e então ocorreu-me a pergunta, que não era nova, e me seguia desde os tempos da primeira visita ao mosteiro, com renovada sinceridade porém – como ser grato, grato o bastante ou suficientemente grato, completamente grato, infinitamente grato, indistintamente grato? Amar… Então como eu posso amar mais? Como eu posso amar tudo? Como eu posso amar por completo? Como eu posso amar o bastante? Como eu posso amar até o que eu não consigo amar? E ocorreu-me, ali imóvel sob o umbral da porta, no limiar e meio do céu… a resposta… talvez… retirando o eu?!

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Leia o Trecho XII – How to disappear completely

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