Trecho VIII- In the Upper Room

setembro 5, 2009

A estrela que nasceu tinha tanta beleza
que voluntariamente a elegeu minha sorte.
Mas a beleza é outro perfil do sofrimento,
e só merece a vida o que é senhor da morte.

Cecília Meireles

Leia O diário dos dias extraordinários completo:

Trecho I – Just an ordinary day

Trecho II – If I let you in, I’ll never let you out

Trecho III – Tea for two

Trecho IV – Last flowers

Trecho V – Als das Kind Kind war

Trecho VI – Where do you start?

Trecho VII- Will you sink, will you swim?

A caminho da cobertura, Theo saiu em disparada pela escada, escalando com facilidade três ou quatro degraus em cada pulo. Já tinha descalçado as sandálias para entrar no meu apartamento, e agora as vestia nas mãos, e subia os degraus sem fazer ruído, pulando e parando, equilibrando-se, como se flutuasse, e de novo pulando. Observei que ele tinha pernas longas, ágeis, fortes, os músculos estirando o algodão – e achei-as belas, inclusive as nádegas, o que me incomodou, e de novo busquei refúgio na prática que estivera fazendo. Desejo e paz – não opô-los, mas irmana-los –, será que eu seria capaz? Subi cada degrau recitando meu mantra — Peace is every step, vagarosamente, com dedicação e sinceridade. Passei a manter baixo o meu olhar, foi assim que o deus adolescente sumiu da minha vista, e imaginei que iria encontrá-lo de novo só lá no topo, 7 andares mais dentro do céu. Esperava-me porém no patamar do andar acima, onde se ouvia com maior clareza e intensidade a algazarra dos gêmeos, que ele parecia não notar, ou pelo menos não se interessar. Peace…is… ev…‘ry… step… Peace

— Você não perde um só segundo, não é? – ele flutuava no alto, e de lá olhava-me benéfico, imensamente belo, o verde luminoso de seus olhos descendendo sobre mim como uma cascata de compreensão e reconhecimento; senti um arrepio e lembrei-me do apaixonado anjo caído de Asas do Desejo, interpretado por Bruno Ganz – Você pode me ensinar?

— O quê? — pensei que Theo não devia ter nascido ainda, quando Wim Wenders fizera seu filme sobre um mundo povoado por anjos; senti-me velho, ultrapassado, e sorri para o anjo do meu desejo, anjo companheiro.

— Isso o que você está fazendo… – eu lia amor e amizade vertendo sobre mim em seu olhar, e muita bondade — Escalando o céu – talvez fosse intencional, ele parado ali, no andar dos gêmeos, mas como se tivesse aberto as asas protegendo-me do barulho detrás dele, com sua atenção e intenção lembrando-me da prática, concentrado em nós dois, somente. Talvez fosse mera coincidência, e eu sabia que aquele anjo poderia a qualquer instante rodopiar e disparar escada acima.

— Para quê, se você pode voar?
— Eu não quero voar — e naquele exato instante, como se ele tivesse o poder de mover os exércitos celestes, trovejou um helicóptero passando nas imediações do edifício, e olhei pela janela da escadaria mas não o confirmei; ao invés, vislumbrei uma improvável estrela. Voltei a olhar para Theo, parado no patamar.

— O maníaco da meditação ataca novamente! – e vi meu amigo ficar em dúvida e surpreso, então esclareci – Estou falando de mim mesmo… Só vamos demorar mais tempo para chegar, e pelo caminho você pode perder a paciência comigo… – tentei rir.

— Ou posso encontra-la, depende. Eu só quero caminhar… sobre esta terra, em paz… – e a essa palavra, que era o passo em que eu havia sido interrompido por ele, de novo estremeci, dando-me conta de que estava diante de algo maior e mais maravilhoso do que podia compreender – Você me ajuda? – ele inclinou a cabeça para o lado, docemente, e sorriu melancolicamente, ao perguntar – Por que você não crê em mim?

Subi os degraus que faltavam e abracei-o. E naquele abraço ouvi claramente a batida do meu coração, como se fosse uma contra-sinfonia ao clamor dos gêmeos por detrás da porta. Finalmente compreendi que meu coração companheiro estava sempre mais cerca e batia mais alto do que qualquer barulho que pudesse me incomodar, jamais. Abracei Theo para desculpar-me, e agradecer.

Peace-is-every-step… – ensinei, ao final do nosso abraço de concórdia; dei-me conta de que ele cheirava a lavanda, ou seria água de flor de laranjeira? — ou até mais lento, como eu vinha fazendo… divido em Peace… is… ev… ‘ry… step.
— Você pode ir na frente?
— Se você quiser que eu vá…
— Eu quero.

E assim subimos os seis andares restantes, cultivando a paz. Jamais imaginei que faria isso no meu próprio prédio, e com companhia. Posso lembrar-me praticamente de cada degrau, de como não pensava mais, permanecendo concentrado na batida do meu coração, e no mantra, marcando o ritmo… Mas senti um pouco de satisfação à medida que fomos subindo e o barulho dos gêmeos ficando para trás, junto com o tormento que me causava… E todo o tempo estive consciente da minha respiração e de Theo caminhando atrás de mim, sentindo-me escoltado pela criatura mais linda. Nas curvas da escada, eu podia vê-lo, e notava que estávamos executando a mesma coreografia. Sim, eu poderia descrever cada degrau daquela noite, a progressão e a ascensão, nossa concentração conjunta que nos confirmava, minha consciência e meu coração. Mas assim jamais chegaríamos à cobertura.

Há muitos anos que não ia ali. Na última década, algumas rachaduras e infiltrações tinham tomado o lugar das festas como razão de visitar o topo do nosso prédio. Havia uma escada comunicando o vestíbulo da cobertura com o salão de festas, e então a porta que se abria para a marquise externa percorrendo uma das faces do salão – e Cirilo havia me contado que a “família fantasma” tinha cogitado construir uma escada interna subindo da sala de estar e abrindo-se em meio ao jardim que cercava o salão de festas, e que, por razões óbvias, não pudera ser executada.

ocean_DJ bluesy light multiply

Quando Theo abriu a porta que dava para a noite, aspirei o ar que pareceu-me mais fresco, meu coração pulou e expandiu-se, prevendo a liberdade das alturas, em minha fascinação por sótãos e telhados. A primeira coisa que vi foi um dos botes mencionados pelo síndico, a alguns metros da marquise onde nos encontrávamos. Como se tivesse acabado de zarpar e nos deixar, a proa apontava para dentro da noite e em direção à mureta da lateral do prédio – e transportava uma árvore, crescendo dentro dele, a silhueta recortada na escuridão rumando para a luz. Era lindo, era poético, era inusitado; soltei uma exclamação e ri. Para quê alguém ia querer dois botes no topo de um edifício, me explica! Theo olhou-me e riu também, encolhendo os ombros daquela maneira tímida que o tornava mais encantador – e desprotegido.

— Bem vindo à minha casa. Es tu casa. – ele ecoou, sorrindo, e depois abrindo metros de braços e ombros como um Cristo exuberante, ofertando-me a paisagem noturna do topo da cidade, e rodopiou, como costumava fazer quando se sentia contente – ou envergonhado.

Ao lado da porta pela qual saíramos, uma outra, envidraçada, dava acesso ao salão, o qual Theo adentrou no escuro e como um bailarino e cenógrafo acendendo com a ponta dos pés diversas luminárias de chão, de formas inusitadas, a mais próxima delas parecendo uma dinamite vermelha, a mais distante como um meteoro emitindo luz amarelada, enquanto eu continuava parado à porta.

— Você gosta de pouca luz, não é? – ele devia ter ficado com essa impressão de ontem, quando havíamos meditado no escuro – Eu também prefiro. Ou quer que eu ilumine o aquário inteiro? – o salão, em formato de uma bola de futebol americano, era envidraçado em toda a sua extensão, com exceção das duas pontas unindo a marquise – Vem… – chamou-me, de uma poça azul no centro da sala, emanada por uma luminária negra em forma de cuia jogando sua água ótica num jorro em direção ao teto. Descalço, entrei.

Cada pessoa é um universo era uma de minhas máximas quando adolescente — quando tinha a idade de Theo — e dela me lembrei ao entrar no espaço do meu jovem amigo. Ao dizê-la eu subentendia várias coisas, e entre elas, as pessoas estarem muito distantes umas das outras, incomunicáveis, cada qual perdida em seus próprios confins, mas também que cada pessoa tinha uma vastidão infinita a oferecer a cada encontro, e era nisso que eu pensava agora, gravitando na direção de Theo através da sala ampla de poucos móveis, com sua iluminação sutil e multicolorida. Tive de desviar-me de algumas pilhas de livros, altas como pedestais para esculturas inexistentes — que, talvez, naquele vernissage esvaziado, fossem afinal as próprias estalagmites de papel.

— Posso colocar música?
— Claro… A casa é sua… – estava distraído, confirmando a impressão do próprio Theo de que parecíamos estar num aquário, flutuando na obscuridade, entre poças de luz colorida. O efeito era muito cenográfico, sofisticado demais para um adolescente, pensei. Talvez também através da avaliação de Lissa, mas com nossa convivência nos últimos dias, havia acrescentado alguns anos à minha estimativa do deus adolescente, e às vezes chegava até 21, 22 anos de idade.
— Vocês ouvem música, no mosteiro?
— Hum… Há os cânticos e canções próprias da nossa tradição, que cantamos quase todos os dias, em ocasiões diferentes. E há muitos músicos… Por alguma razão, há sempre um grande número de músicos visitando o mosteiro, profissionais mesmo, compositores e até maestros, então temos boa música ao vivo e jam sessions o tempo todo… Muitos monges, mesmo, são músicos maravilhosos… Mas assim – indiquei o ipod na mão dele –, menos… Quer dizer, você pode ter um desses e de vez em quando escutar algo nele, mas ninguém coloca música para tocar, para os outros ouvirem – Theo olhava-me, tentando compreender – Quando é música coletiva, é música ao vivo… todos cantamos, todos participamos.
— Você toca algum instrumento?
— Nada. E você?
— Percussão. Às vezes. Um pouco – ele riu, enquanto com destreza manejava o mp3 – Acho que vai ter de ser com isso mesmo, tá bom? – levantou o aparelhinho para mim.
— Tudo bem. Nós não estamos no mosteiro – mas disse isso de maneira leviana, que soou inclusive maliciosa, e Theo perscrutou-me. Salvou-me o espaço amplo e a obscuridade colorida, onde nada se confirmava.
— Montei uma playlist. Acho que você vai gostar.
— É Alva Noto? — apressei-me em querer reconhecer, afetando sofisticação e intimidade com o som mínimo, como se fosse uma música captada do espaço, incerta e com interferências – Ou Ryoji Ikeda? – era o mais longe que me aventurava em terreno eletrônico.
— Não, é Oval – em música, estava para descobrir naquela noite, nós nada compartilhávamos em comum — Markus Popp, conhece? E tem também Autechre, Microstoria, Conrad Schnitzler… Você gosta de Four Tet?
— E quando a nave decola? – fiquei quase zonzo com a quantidade de nomes desconhecidos, envolto pela trilha sonora que afinal era bela, mínima como a luz ou um vapor elétrico que soasse.
Theo's playlists blue

Enquanto Theo cuidava de tirar os ingredientes da geladeira e preparar o couscous que havia prometido, vagueei pelo apartamento, que ocupava cerca de 150 dos mais de mil metros quadrados da cobertura. O restante do retângulo era área gramada. Em parte pelas pilhas de caixas e livros, tive a impressão de que meu amigo ainda não tomara posse do espaço – conhecendo-o melhor, depois, ia compreender que deixar vazio o espaço era a maneira peculiar dele de ocupa-lo — Theo compunha com vazios. Na parede oposta à de área molhada, onde ficavam compactas cozinha e toiletes, havia sido colocada a cama, uma enorme plataforma de madeira escura com um colchão por cima, parecendo um amontoado de pedras, o edredon que a cobria com a reprodução fiel e fotográfica de um trecho de solo rochoso. Tinha bom humor. Sobre a cama, admirei duas gravuras que reconheci imediatamente como sendo da refinada série Moby Dick, de Frank Stella, que havia visto completa numa inesquecível exposição no MALBA. Havia também uma incrível escultura em bronze, que só depois identifiquei ser uma impossível, rara After Spring, a deslumbrante chaise longe escultórica do Ron Arad. Automaticamente, comecei a calcular os valores daquelas solitárias peças preciosas. Além das luminárias, de resto não havia sofá, nem mesa ou cadeiras, só espaço – e uma pequena coleção de banquinhos africanos em reunião, agrupados num canto como se fossem árvores acocoradas contando histórias entre si. E bem no meio da sala, uma pilha colorida e divertida de…

— Estes são os meus bonshommes… Pode deitar neles – Theo picava legumes sem perder-me de vista, e sorria. Era a minha vez de reconhecer o terreno dele.

— De quem são? – algum jovem designer que eu não conhecia. Joguei-me sobre aqueles acolhedores homens macios – Você mesmo escolheu essas peças?
— Devia te dizer que sim, para te impressionar… Não e sim. A Fedora me ajudou… Foi quem me ligou hoje, quando estávamos juntos, lembra? – de imediato recordei-me da risada feliz de Theo quando ele a identificara do outro lado da linha – Tem uma foto dela… Ali! – com uma colher na mão, indicou-me uma das pilhas de caixas, entreabertas ou fechadas, espalhadas pelo apartamento inteiro. Theo ainda estava de mudança, ainda chegando – refletindo, iria contar-me, sobre ficar ou não no Brasil.

Se tivesse pego aquele porta-retrato na casa de uma outra pessoa, diria que teriam esquecido de substituir a foto promocional, ou talvez tivessem se encantado com os modelos e resolvido mantê-los, mas como era a casa de Theo… Imediatamente soube que eles eram italianos – espantosamente, algumas das feições clássicas do Império Romano atravessavam os séculos e continuavam a povoar a Itália, e em viagem as encontrara tanto nas boates de Roma quanto nas vilas da Calábria, e de novo diante de mim, naquele porta-retrato. O rapaz tinha as feições de um soldado de César, o cabelo crespo e volumoso quase como um capacete, e ela trazia as linhas nobres de uma jovem dama Flaviana que tivesse decidido rebelar-se e cortar muito curto o cabelo – eram muito parecidos, narizes nada tímidos, maxilares orgulhosos, queixos salientes e arredondados, bocas de lábios finos como discretas portas de possibilidades bem guardadas (e eu imaginei como seria beija-las), embora no todo mais doce fosse ele, olhos tranqüilos e cheios de ternura, e ela bastante voluntariosa, o olhar como um desafio, uma catapulta.

— Ela é linda – e linda de uma maneira muito incomum, uma beleza aguda, feita de personalidade e intensidade. Senti um arrepio.
— Ela é – disse Theo, sorrindo, secreto, íntimo, satisfeito, no compasso da música sutil, quase silenciosa, soando como um longínquo canteiro de construção. Microstroria, mostrava o menu.
— É atriz? – ele havia tentado entrevistar Lissa, e agora era a minha vez.
— Não. É cineasta. Documentarista.
— Ela é… – lembrei-me da resposta atravessada da minha sócia à pergunta aberta do meu amigo – sua namorada?
Theo inclinou a cabeça e olhou-me, em dúvida, como quando nos havíamos conhecido, calculando meu interesse e a sua proporcional sinceridade. Achei que não fosse responder. Apenas avaliava, longamente. Corto mais cubinhos de cenoura ou tá bom? Conto a ele, ou não?
— Às vezes – perscrutou-me, quando me aproximei do balcão onde ele trabalhava, à luz de uma luminária de papel de arroz, o design japonês contemporâneo reinterpretando uma longeva tradição — Nos últimos dois anos, nós estivemos nos fazendo companhia. Sim.
Sorri, pensando em mim mesmo e Lissa nos últimos vinte anos.
— Nós nos amamos. Mas nunca estivemos apaixonados. Ela diz que nós já fomos casal em muitas outras vidas, e resolvemos todas as nossas questões. Nesta, podemos apenas desfrutar do nosso amor, em paz.

Ritratto di età Flavia bluesy pin light

Naquele instante, o celular tocou, e ele começou a rir ao consultar o visor.
— Adivinha!
— Joshua?

Theo olhou-me surpreso, e atendeu ainda rindo, e continuou rindo ainda. Então eu soube que era Fedora. Olhei na foto a linda namorada do meu amigo. Tentei alegrar-me com sua alegria, mas não consegui. Sempre e toda instrumental, a música começara a chacoalhar como vagões antigos, acidentando-se em riscos, chiados, rasgos, ritmo praticamente sem melodia. O tal Autechre, que eu nem sabia como pronunciar. Triste, talvez agora preferisse a alternativa da tese conspiratória de Lissa, na qual Theo afinal estava atrás de mim. Estava com fome, e fiquei imaginando quem seria o rapaz tão lindo quanto a mulher ao telefone. Madrugada na Europa — o mosteiro estava em horário de nobre silêncio. Ao contrário de Lissa, eu era péssimo para calcular idades, mas teriam mais de 25, talvez perto de 30 anos. Ambos tinham olhos mediterrâneos, na forma de amêndoas, da cor de mel esquentando ao sol. Na foto, Fedora abraçava o rapaz pelo pescoço, com muita certeza e amor. Os dois estavam molhados; rebrilhando nos respingos, o sol tornara os sorrisos deles ainda mais luminosos.

— Verão de 2006 – levei um susto ao ouvir a voz de Theo bem junto de mim. Para onde eu tinha ido? Carregado por meus pensamentos e imaginação, havia por alguns momentos me esquecido dele. Nem percebera que ele já havia encerrado a conversa. Quanto tempo eu estivera ausente? Ele se debruçava por cima do meu ombro – Eu tirei essa foto – surpreso, ouvi pela primeira vez a voz dele parecer dura, desanimando de perguntar quem era o rapaz, e devolvi o porta-retrato à pilha de caixas – O que você quer beber?– Theo punha os olhos no retrato, e pareceu-me que tinha raiva — Vamos comer? Está pronto – estava no mínimo contrariado; talvez tivesse brigado com Fedora? Nesta vida ainda não, ele me garantira – Pensei em comermos lá fora. Ou será que vai chover hoje também? – no controle remoto acendeu as luzes do jardim, pequeníssimas lâmpadas encravadas pelo gramado que o transformaram num chão estrelado como São Paulo jamais tinha o céu.

Os prédios ao lado do nosso eram ambos mais baixos, pois à época em que foram construídos havia um limite de altura para os prédios na avenida. Os prédios nas ruas detrás, no entanto, eram mais recentes, uns horrendos monstrengos engolidores da classe média sem gosto nem estilo, e todos mais altos. Perguntei se Theo não se incomodava em dar-se à vista daquela gente, e ele pareceu sinceramente surpreendido.
— Você prefere comer aqui dentro? – indagou, um pouco ríspido.
— Você prefere que eu vá embora? – retruquei, mal-humorado.
— Desculpe – fechou os olhos e inspirou profundamente – Desculpe – repetiu, encarando-me — Fedora acabou de lembrar-me de uma data triste – encolheu os ombros e abraçou-se, como se sentisse frio, fechando-se – A vida parece sem sentido às vezes, não parece? E injusta – vi-o afastar-se, ir embora. Para algum lugar além deste mundo. Perdi-o de vista. Oferta e aproximação, isolamento e rejeição. Era um balé do qual eu estava farto. O quê mais dizer?

— Sem problema. Posso ir embora.
Theo sacudiu levemente a cabeça em negação, como se isso fosse improvável, e depois com mais força, como se ficasse impossível, e me abraçou – sim, um fiel leitor já me avisou que Theo e eu ficamos sorrindo e nos abraçando o tempo todo, e ele acha um exagero. Mas como, se desde o início sentimos essa urgência em diminuir o espaço entre nós, e o abraço é tudo quanto podemos suportar, agora? Ver, sorrir e abraçar — é assim mesmo entre nós, só e sempre assim, por ora.

Na outra ponta do salão ficava o segundo bote, com sua árvore sendo carregada em direção à noite. Simetria era outra das constantes de Theo, mesmo na vida, como eu descobriria. Levou-me até duas belas poltronas de madeira clara, cada qual dentro de uma estrutura contínua de pés tornando-se colunas que sustentavam um toldo móvel — eu iria pesquisar até descobrir serem as SWA cell do duo de arquitetos japoneses Setsu e Shinobu Ito. Tanto quanto era uma obsessão minha, grifes e assinaturas pareciam não ser do interesse de Theo, que mostrava um desconhecimento inversamente proporcional ao talento que tinha para escolher peças poucas e maravilhosas – ou eu estaria encantado com o gosto de Fedora, já fascinado pela própria?

As poltronas, próximas da borda da falésia de vidro e concreto, apontavam na direção da longa mureta da frente do prédio, por trás da qual erguia-se a luz amarelada da cidade, como um nascente de promessa renovada que nunca se efetuava. Na otomana entre elas, Theo deixou a grande bandeja marroquina de metal que viera carregando, cheia de comidinhas dispostas em pequenos recipientes de cerâmica, e voltou para dentro em busca de velas — fogo é o instinto de eletricidade, ele me disse, e eu não posso passar sem. Caminhei pelo gramado estrelado, aguardando-o para nos sentarmos juntos.

Onde você mora? e ele apontara para o céu — quando pela primeira vez eu havia admirado que braço bonito ele tinha, dando-me conta do desejo que nascia em mim — Então você caiu do céu? Não, subimos juntos ao céu. Estamos no céu agora mesmo – lembrei-me da nossa conversa junto à jabuticabeira, e de que depois ele saíra do meu apartamento dizendo estar no céu, e então conversáramos pelo telefone sobre estarmos no céu, e fazermos juntos o céu… Agora, em seu apartamento, parecia-me que eu acrescentara poesia e fantasia a uma coisa bastante concreta, que era esta casa celeste que ele habitava, e quase envergonhei-me por isso. Parte do céu estava carregado de nuvens trombando-se umas com as outras na escuridão, mas a leste divisava-se estrelas, e um avião descendendo, como se fosse chover — ou não fosse chover, dependendo dos ventos, da parte da cidade, do estado de espírito…

— Não queria comer em silêncio, hoje não, tá bom? – havia aquela maneira dele de encerrar as frases que sempre me fazia sorrir, ou pelo menos ainda, enquanto era novidade.

Entretanto, sem estranheza nem constrangimento, um prudente silêncio salva-vidas estabeleceu-se entre nós, enquanto Theo se acalmava da contrariedade que o dominara, e eu me ambientava naquela vastidão suspensa do jardim estrelado, no qual vinha navegando o salão de festas com sua iluminação de chão sutil e multicolorida, como um transatlântico envidraçado em perseguição ao bote de metal do outro lado, no encalço da árvore que continha, e assim nossas poltronas pareciam jangadas, ou bóias flutuando sobre a metrópole. Um pequeno rochedo de madeira nos provinha de comida — o delicioso couscous preparado por Theo, mais pão, queijo, castanhas, azeitonas, tomates, coalhada, mel, frutas secas –, como se estivéssemos no Mediterrâneo, envoltos por um mar de ar e sonhos. A companhia, o alimento, e o silêncio finalmente tornou-se quietude e contentamento, da minha parte e dele.

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Em algum momento, acordou-nos o toque do celular. Fechei meus olhos e voltei-me à minha respiração, e desfrutei do meu coração apaziguado, do volume baixo dos meus pensamentos desconexos mas não atormentados.

— Não, obrigado, Josh – era o primo – É lógico que eu estou bem. Estou feliz. E você, está feliz? – Theo sorriu – É isso aí, e você sabe desde criança… Tá bom. Amanhã, então. Tchau – virou-se para mim – O Joshua, saindo pra balada. Acaba de me chamar de louco. O que você acha?

— Porque você não quis ir pra balada com ele? – eu me referia à razão de Joshua tê-lo chamado de louco, e refiz a pergunta com outra entonação, desejando saber — Por que você não quis ir pra balada com ele?

— Pra encontrar o quê, ou quem? Todo mundo tá na balada pirado com uma ou outra bolota, fumando e bebendo. Vão para ao final brigarem ou transarem – falava com calma, sem aversão – Pra quê? Por quem?

Lembrei-me que Gustavo vinha dizendo a mesma coisa, nos últimos anos, e no entanto ainda saia para encontrar sua turma, embora fosse o único que não fumasse, desde que passara da fase maconheira com o povo da praia, e nem bebia álcool — era quem normalmente conduzia o carro dos amigos. Pensei como tudo teria sido diferente se ele tivesse optado por afinal fazer Oceanografia numa faculdade do sul do país, como sonhava, ao invés de se decidir sensatamente por Biologia na USP, como Verena o havia aconselhado, pedido, implorado… Provavelmente minha amiga estaria se atormentando muito com isso – se não tivesse pedido a Gustavo para desistir de estudar longe, se tivesse aberto mão dele então, por algum tempo, não teria tido de abrir mão dele agora, para sempre… Era um pensamento cruel.

— Para estar com gente da sua idade?… – pesquisei, provando uma tâmara recheada com pistaches moídos.
— Se é isso o que te preocupa… — Theo encarou-me, e riu – eu sou especialista em não ter amigos da minha idade – inclinou a cabeça de lado – Ou você também acha que eu estou depressivo, como todo mundo?
— Quem é todo mundo? – bebi um gole do chá. Lembrei-me do que Theo havia dito, em sua perspicácia… Não vai ter ninguém nas nossas cabeças… ou tantas pessoas quanto pudermos carregar, e deixarmos entrar, nas nossas mentes… Lissa, Verena, Gustavo, e a eles se juntavam…

— O Joshua. Minha mãe. Minha tia. A Fedora, às vezes.

Olhei-nos. Sentados sobre São Paulo num gramado de estrelas elétricas, o apartamento transatlântico e sua carga de obras de arte na penumbra multicolorida, os botes arborizados à deriva, as jangadas japonesas em que nos abrigávamos do sereno e da poluição. Em algum lugar atrás de nós, um dos horrendos monstrengos vomitava o tum-ti-tum de uma festa.
— Que razões você teria para estar depressivo? – perguntei, temendo que alguma delas fosse uma das minhas razões para estar feliz, naquele extato momento – Não te conheço ainda tão bem…
— Não vamos falar de novo de mim, tá bom? Eu quero ouvir alguma coisa de você… Eu já compartilhei, ontem. É justo que seja a sua vez – disse, definitivo, e tomou um gole de chá, fitando-me com seus olhos maravilhosos pelas bordas do copo de cerâmica. Arregalou-os quando o celular tocou novamente, pela terceira vez naquela noite.
— O que foi? – sorriu, desanimado – Alors? – e começou a falar rapidamente em Francês, que eu não pude acompanhar, a não ser o fim – D’accord ?– aproveitei para tomar refúgio em minha respiração, como dizíamos no jargão meditativo, no tempo que durou aquela ligação, e me preparando para compartilhar, ainda não sabia bem o quê – Desculpa. Era o Joshua – Theo desligou, e fez um gesto de que iria atirar o celular por sobre a mureta – Esperto você, que não tem mais… Enfim, estava passando de carro aqui na avenida, querendo que eu vá junto… Ele é insistente… Ele é querido!
— E você vai?
— Você quer se livrar de mim?
— Nunca. Eu só preciso de mais um momento para… – comer mais um pouco da combinação de pão preto com mel — …acho que o termo seria consultar o meu coração. Não quero contar alguma história que não seja a mais verdadeira desse momento – tinha pensado em relatar minha lembrança da Grécia, mas aquele momento já passara, a não ser pelo queijo de cabra que cheirava — Tudo bem?

— Temos a noite inteira — Theo desligou o celular e recostou-se na cadeira, olhando na direção do horizonte longínquo de silhuetas iluminadas. Torres pontudas piscavam contra um céu pesado de chumbo. Ele fechou os olhos no momento em que eu ia começar a falar sobre o insight que tivera bebendo chá com um monge, aquele que ontem tentara compartilhar com Lissa, inspirado pelo copo em minha mão, e porque tinha a ver com Gustavo. Era sobre partidas, despedidas, desapego, tudo aquilo em que eu era um fiasco; quase uma aula, tinha a ver com o mosteiro e a prática, com o papel de cover de mestre zen que Theo parecia esperar de mim. Tudo muito adequado e conveniente – mas soube que não era verdadeiro quando vi suas pálpebras descerem. Meu amigo tinha uma expressão de tranqüilo contentamento, saboreando um dos deliciosos figos secos recheados com nozes. E então, de repente e mais uma vez, a beleza em alta definição de Theo explodiu diante de mim, e pior, dentro de mim, rasgando tudo que era certo, dilacerando tudo o que fosse bem educado. Desejo de posse, bem ávido. Lembrei-me de uma sentença de Cecília Meireles, a beleza é outro perfil do sofrimento. Lembrei-me de nossa primeira conversa, e o que se seguiu foi surpreendente até para mim:

— Theo… – lembrei-me do início do poema de Rilke, Wer, wenn ich schriee, hörte mich denn aus der Engel Ordnungen?Se gritasse, quem das legiões de anjos escutaria o grito? – Theo!!! Mas o grito esteve só em minha mente. Lembrei-me que a frase havia aparecido num de meus filmes essenciais, Paisagem na Neblina, de um outro maravilhoso Theo, o Angelopoulos. Por todos os lados, parecia-me que só me restava invocar Deus, e agüentar firme. Caminham sombras duas a duas,/ Felizes só de serem infelizes,/ E sem dizerem, boca minha, o que tu dizes… Cecília Meireles, de novo, rodopiou na minha lembrança, e parte de mim pedia não fale, não faça, vá embora, enquanto eu me aprontava para mergulhar na minha miséria e vergonha, sabedor que meu mar imundo iria respingar em meu querido amigo… Desde que não nos afoguemos — inquieta, a mente rodopiava, rodopiava – Theo…

Leia o Trecho IX- From Gagarin’s point of view

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